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Aya de Youpougon está disponível no acervo da Gibiteca Helena Fonseca. |
Por muito tempo persistiu – e ainda persiste – no
imaginário coletivo o estereótipo de que a África é um lugar atrasado e
assolado pela miséria. Essa forma de pensar e de se representar a África
vem sendo colocada em xeque graças ao esforço de diversos intelectuais e
artistas africanos que apresentam outras perspectivas sobre o continente,
denunciando, assim, o grande perigo que é contar uma história única.
Nesse cenário de reivindicação das narrativas e
reinterpretação dos sentidos na busca de evidenciar a diversidade existente nos
diferentes países africanos, a cena de quadrinhos africanos surge como uma
potência criativa que vem chamando a atenção dos leitores não só do Brasil, mas
de todo o mundo.
“Há na cena
de quadrinhos do continente uma variedade enorme de estilos, traços e
influências distintas abordando as mais diversas temáticas. Temos desde contos
infantis, como Akissi, de Marguerite Abouet e Mathieu Sapin, passando por
narrativas biográficas como o The Initiation, de Mogorosi Motshumi, que
permite vislumbrar a vida cotidiana de um artista em formação durante os anos
do apartheid sul-africano, até deuses renascendo para combater vilões, como
em El3osba, de John Maher, Maged Raafat e Ahmed Raafati.” É o que nos diz
o professor e pesquisador de quadrinhos sul-africanos Júlio Sandes.
Interesse de longa data
Júlio aponta que o interesse tanto do público,
quanto dos pesquisadores brasileiros por HQs africanas não é algo novo e que
vem crescendo há cerca de uma década. “O fortalecimento das discussões sobre o
papel das histórias negras e africanas na indústria do entretenimento
em nível mundial faz com que público se pergunte: ‘onde estão as histórias
africanas contadas por artistas de África’”, comenta.
Um dos fatores atuais que despertaram o interesse
do público brasileiro foi o curso Quadrinhos Africanos, ministrado
gratuitamente pelo pesquisador e editor Márcio Rodrigues em seu canal do Youtube. “O
curso online é uma reedição de um curso presencial que ofereço no Maranhão há
um tempo”, afirma Márcio.
“A ideia surgiu inicialmente como uma parceria com
o Curso de Estudos Africanos e afro-brasileiros da UFMA, e foi construído junto
do Centro Acadêmico Maria Firmina dos Reis, encabeçado por estudantes do
referido curso”, complementa.
A respeito da recepção do curso, Márcio diz que o
público se mostra bastante interessado. “O interesse é tanto que o pessoal me
aguenta falando por quase 4 horas seguidas sobre quadrinhos africanos e só se
lembra de pedir para assinar a lista de presença após 3 horas de falação”,
brinca.
Interesse do público, desinteresse das editoras
Todavia, mesmo que haja interesse pelos quadrinhos
africanos por parte do público leitor e dos pesquisadores, as editoras voltadas
para a publicação de HQs no Brasil parecem não dar tanta importância, ou até
mesmo desconhecem essa produção.
Márcio afirma que costuma acompanhar o catálogo de
editoras que geralmente se identificam como progressistas e percebe a falta de
diversidade nas publicações. “Fico espantado de ver como em alguns catálogos
não há publicação de autoria negra ou feminina, até quadrinhos europeus, como
os alemães, são ignorados. Agora imagina se vão dar atenção para os quadrinhos
africanos?”, afirma.
Entre as poucas publicações de quadrinhos africanos
feitas no Brasil, temos Funmilayo Ransome-Kuti e a União das Mulheres de
Abeokuta, de Obioma Ofoego e Alaba Onajin, Njinga Mbandi – Rainha de
Ndongo e Matamba, de Edouardserbin Joubeaud e Wangari Maathai e o
Movimento do Cinturão Verde, de Wangari Maathai e Eric Muthoga. Essas são obras
que fazem parte da coleção Mulheres na História da África, publicados pela Casa
das Letras.
A Sesi-SP Editora lançou Púrpura, de
Pedro Cirne. A HQ foi inspirada na história da avó do autor, que é
luso-angolana, e traz perspectivas dos países africanos falantes de português,
como Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau.
Já a embaixada brasileira em Cabo Verde lançou uma
adaptação do romance O Mulato, que foi ilustrada pela cabo-verdiano Hegui
Mendes. A embaixada também produziu um quadrinho com contos de diferentes
países falantes de português.
Também passou por aqui uma coletânea de autores
falantes de português, o BDLP - Banda Desenhada da Língua Portuguesa,
organizado pelo Estúdio Olindomar. A publicação chegou a ganhar o HQmix,
considerado o Oscar dos quadrinhos no Beasil, e contou com a participação de
autores brasileiros. A BDLP já está no quinto volume, mas só o
primeiro teve uma boa repercussão por aqui.
Atualmente a Skript Editora está realizando a
pré-venda de dois quadrinhos africanos. O primeiro é Ligeiro Amargor: uma
História do Chá, do costa-marfinense Koffi Roger N'Guessan, com roteiro da
dupla Elanni e Djaï.
Já o segundo quadrinho é O Pesadelo de Obi,
quadrinho guinéu-equatoriano com roteiro de Chino e Tenso Tenso e ilustração de
Ramón Esolo Ebalé. A obra satiriza o atual presidente da Guiné Equatorial
Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, o que ocasionou na perseguição política dos
autores, sendo que Ebelé chegou a ser preso.
As duas HQs contam com a edição de Márcio Rodrigues
e só chegaram no Brasil graças ao curso sobre quadrinhos africanos. “O
convite surgiu após o Sandro Merg, organizador do Butantã Gibicon, ter dito ao
Douglas Freitas, um dos donos da Skript Editora, que ele estava fazendo o meu
curso online. Douglas então entrou em contato comigo e desde então temos
passado 24 horas por dia falando sobre quadrinhos”, comenta.
Mas de todos os quadrinhos africanos publicados no
Brasil, Aya de Yopougon, com dois volumes publicados pela L&PM, com
roteiro da costa-marfinense Marguerite Abouet e arte do francês Clément
Oubrerie, talvez seja a obra mais conhecida e acessível por ter sido
selecionada para o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) em 2012.
“Esqueça tudo o que você já ouviu sobre a África”
É assim que se inicia a sinopse de Aya de
Yopougon. A HQ acompanha a rotina de três amigas, Aya, Bintou e Adjoua, que
vivem dilemas normais de tantos outros jovens: garotos, festas e dúvidas sobre
o futuro. Tendo como palco o bairro de Yopougon, na Costa do Marfim, a obra é
ambientada nos anos de 1970 e traduz algumas das vivências da própria
Marguerite Abouet.
“Acompanhar a história daquelas jovens por Yop City
desafia as noções pré-concebidas que o senso comum constrói sobre o que seria
uma juventude africana”, comenta Júlio Sande. “Aya não é ‘de África’, nem
tampouco ‘de Abidjan’ – cidade onde habita. Ela é de Yopougon. Um bairro que é
o seu mundo”, completa.
Para o professor e pesquisador, esse fato já coloca
em cheque a noção racista de uma africanidade universal, que toma toda
experiência e toda pessoa africana como um exemplar da mesma história, da mesma
realidade.
“Um equívoco que só ocorre por conta da ‘história
única’, para usar a expressão tornada famosa pela escritora nigeriana
Chimamanda Adichie, que o senso comum conhece sobre todo um continente e que
precisa ser implodida para ser complexificada”, diz Júlio.
Novos universos
Sobre a publicação de quadrinhos africanos no
Brasil, tanto Márcio quanto Júlio apontam para a importância não só de atender
uma demanda antiga de leitores e pesquisadores, mas também de apresentar ao
público outros universos simbólicos que são totalmente diversos e diferentes
dos que estamos acostumados a ver, contribuindo para expandir a nossa ideia
sobre quadrinhos e sobre o continente africano.
“Essas publicações certamente contribuem para o
questionamento dos estereótipos generalizantes e frequentemente racistas que o
senso-comum costumeiramente atribui à região e aos seus povos”, finaliza Júlio.
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Texto publicado no Brasil
de Fato, em 21 de março de 2021, de autoria de Edmar Neves é filho de
Oxóssi; mestrando em Teoria e História Literária pelo IEL/Unicamp e pesquisador
de histórias em quadrinhos, literatura, arte e cultura negra/periférica.