Nos últimos anos, as Histórias em Quadrinhos têm sido utilizadas como recurso didático por muitos professores das diversas disciplinas que compõem o currículo escolar. Elas oferecem uma gama variada de possibilidades de uso pelos professores. Na sala de aula, sua produção ajuda os estudantes a compreenderem temas complexos da História, que normalmente estão afastados da sua experiência diária de vida. Seu uso como recurso didático, no entanto, ainda é tema pouco discutido no meio acadêmico. Nosso desafio, na presente exposição, é apresentar possibilidades de utilização das Histórias em Quadrinhos como forma de reforçar o processo de ensino e aprendizagem, além de expôr experiências e resultados deste trabalho com alunos do Ensino Fundamental.
A arte seqüencial – como é classificada a História em Quadrinhos -, é muito valorizada, especialmente em países europeus, como a França e a Bélgica, onde editoras especializaram-se na sua publicação, na forma de álbuns cartonados, alguns com encadernações de luxo. Com gêneros variados, as estórias atingem a públicos de todas as idades. As histórias em quadrinhos com temas históricos, por exemplo, são um grande sucesso. Elas são ambientadas nos mais variados contextos, desde a antigüidade (como Alix, Asterix e Papyrus), passando pela Revolução Francesa (Dampierre), apenas para citar alguns exemplos. Os temas abordados também envolvem questões sociais atuais, como discriminação racial, pobreza e desigualdade, além de política e organização econômica.
Na Argentina, temos a consagrada produção de Quino, publicada no Brasil pela Editora Martins Fontes, criador de Mafalda – uma menina precoce e questionadora – e seus amigos, personagens que possuem uma incrível carga de crítica político-social. As tirinhas de Mafalda são uma referência a problemas atuais e são exploradas na composição de questões de vestibular, nas universidades brasileiras – as charges também servem freqüentemente a este propósito.
Existe no mercado editorial brasileiro uma quantidade considerável de álbuns produzidos com finalidade pedagógica. Vamos nos ater, no caso específico, aos volumes dedicados ao ensino da História ou que podem ser referenciados como tal. Esse tipo de iniciativa não é exatamente uma novidade. A Editora Brasil-América (EBAL), fundada em 1945 por Adolfo Aizen, foi um dos pioneiros na produção e edição de histórias em quadrinhos dedicadas a temas históricos, abrindo espaço para desenhistas nacionais, numa época em que os quadrinhos eram colocados como responsáveis pela delinqüência juvenil.
Ele lançou as séries Edições Maravilhosas, Grandes Figuras do Brasil (lançado pela primeira vez em 20 volumes, entre 1957 e 1958), História do Brasil e Epopéia. A finalidade destes empreendimentos, segundo o professor Alexandre Valença Alves Barbosa, era reverter o status cultural dos quadrinhos e afastar do Brasil o fantasma da censura aos quadrinhos – praticada na década de 50 nos Estados Unidos, na forma do macartismo, liderado pelo senador Joseph McCarthy, o mais famoso caçador de bruxas, no cinema, jornalismo, literatura e televisão -, colocando-os como parte importante da formação cultural Brasileira. Para tanto, Aizen procurou se aproximar das autoridades brasileiras da época, como o Ministro Clóvis Salgado.
A produção de Histórias em Quadrinhos da EBAL possuía características positivistas. Eram álbuns ilustrados por desenhistas brasileiros e organizados por historiadores, que privilegiam a narrativa e apresentavam os temas de forma romanceada, enaltecendo a figura do herói. A título de ilustração, podemos citar a edição comemorativa dos 500 anos do nascimento de Pedro Álvares Cabral, lançada pela EBAL em l968. Outro exemplo é a História do Brasil em Quadrinhos, que narra em duas edições a História do Brasil (de 1500 a 1967). Os dois álbuns possuem um caráter enciclopédico, prevalecendo a narrativa dos fatos, que são ilustrados em quadrinhos, sem destaque para nenhum personagem em especial.
A redemocratização trouxe ao mercado nacional novas abordagens de temas de nossa História, como é o caso do álbum produzido pelo cartunista Angeli e pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz, “Cai o Império! República vou ver!”. Com bom humor e descontração, os autores contam a transição do Império para a República. Este álbum faz parte da coleção Redescobrindo o Brasil – um nome bem sugestivo - e exemplifica uma transformação na linha editorial brasileira, que rompeu com a rigidez e o oficialismo característicos da produção nacional até então.
No campo da ficção, temos a obra de Flavio Colin e Wellington Srbek, “Estórias Gerais” (2001), que traz influências literárias, mescladas com a História, ao retratar o banditismo no norte de Minas Gerais. Uma mistura de Guimarães Rosa, Monteiro Lobato e tantos outros autores regionalistas, retratando de forma singular a vida e as dificuldades do povo brasileiro, seu folclore, seu misticismo, seus valores e suas angústias, ao explorar o tema do banditismo e do coronelismo no norte de Minas Gerais.
Cabe citar também o mineiro Henfil, um dos cartunistas brasileiros de maior influência sobre a juventude durante a ditadura militar. Seus personagens da caatinga, como a Graúna, Zeferino e Bode Orelana, foram presenças diárias nos jornais, não esquecendo ainda do Urubu; Ubaldo, o paranóico; e do Orelhão. Através deles, Henfil extravasou seu inconformismo com as injustiças e preconceitos sociais. Seu trabalho foi homenageado em 2003, com o lançamento de um documentário exibido pela TV Cultura – Henfil em profissão: cartunista.
Existe uma grande quantidade de Histórias em Quadrinhos que podem ser utilizadas nas salas de aula. Seria necessário muito mais do que algumas páginas para descrever e analisar toda a produção nacional e estrangeira que pode ser utilizada como recurso didático. O momento, no entanto, não seria apropriado para dissertar em demasia sobre o assunto.
Vamos relatar aqui a nossa experiência com o uso das Histórias em Quadrinhos na sala de aula, mais especificadamente no ensino Fundamental, em uma comunidade carente. Encontramos muita dificuldade em transmitir conceitos complexos aos estudantes, tais como modo de produção e revolução. Os resultados nem sempre foram satisfatórios. Muitos alunos não conseguiam traduzir em palavras o conteúdo estudado. É abstrato demais, muito distante da realidade onde eles vivem. Começamos então a introduzir, aos poucos as histórias em quadrinhos nas atividades de sala de aula.
Inicialmente trabalhamos com alunos de quinta série, analisando pequenas tirinhas, retiradas de jornais ou gibis, com alguns personagens conhecidos dos alunos, como a Turma da Mônica (de Maurício de Souza), e outros menos conhecidos, como Mafalda (Quino) e a Turma do Xaxado (Antônio Cedraz), relacionando-as aos temas que eram trabalhados na sala de aula, incentivando produções de textos e a análise do conteúdo expresso nos quadrinhos. Trabalhar com histórias em quadrinhos é, ao mesmo tempo, trabalhar com arte e com literatura. As crianças e os adolescentes gostam de ler; apenas não estão, em alguns casos, habituados a isso. Os quadrinhos são atraentes, porque conseguem prender a atenção como nenhum outro recurso didático seria capaz.
Num segundo momento, partimos para o desafio de criar Histórias em Quadrinhos com os alunos. Dentro de uma perspectiva construtivista, trabalhamos a construção do conhecimento histórico, associando-o a uma atividade criativa e original. Começamos esse trabalho com turmas de sétima série. O tema escolhido foi a escravidão no Brasil - conteúdo que estava sendo estudado naquele momento em sala de aula. A proposta era a confecção de histórias em quadrinhos simples, que não chegavam a ocupar mais do que uma ou duas laudas. Os trabalhos tiveram bons resultados, mas ainda faltava aprimorar a técnica de produção, a fim de permitir ao aluno desenvolver e organizar melhor suas idéias.
Encontramos nas páginas da revista Nossa Escola excelentes sugestões de como trabalhar as Histórias em quadrinhos na sala de aula e as adaptamos à realidade material dos alunos e da escola. Passamos a direcionar os trabalhos não apenas para o conteúdo histórico mas, principalmente, para desenvolvimento da criatividade do aluno. Levamos em consideração também a capacidade de trabalhar com um método de criação, além da capacidade de representação de temas históricos. Os estudantes recebiam um duplo desafio: eles tinham não apenas que organizar as idéias, como também seguir as regras (método) de criação de uma história em quadrinhos. Era necessário criar e organizar as idéias. Era preciso disciplinar o espírito, seguir regras.
O processo de criação foi dividido e organizado da seguinte forma: a) criação dos personagens; b) argumento e roteiro, que devem preceder a “arte” e orientá-la a fim de organizar e estruturar a história em quadrinhos; c) o desenho em si, que deve ser definido e discutido antes de finalizado; d) as letras, que não podem extrapolar o espaço delimitado em cada quadro, daí a necessidade de se organizar bem o roteiro; e) a arte-final e a cor.
Inicialmente, a atividade foi sugerida de forma extraclasse. Os alunos teriam um tempo considerável (de uma a duas semanas) para entregar seus gibis. Os resultados, no entanto, ficaram aquém do que era esperado. Alguns não fizeram e outros simplesmente ignoraram completamente a metodologia. Poucos foram os trabalhos que realmente atingiram o objetivo. Foi preciso mudar a estratégia. Os gibis passaram a ser produzidos na sala de aula, sob orientação direta do professor. Os alunos se organizaram em duplas. Eles aprenderam a dividir as tarefas: depois de escolher o tema e definir os personagens, um deles ficava a cargo do roteiro, enquanto outro se preocupava com a arte. Os dois juntos davam o retoque final no trabalho. Em alguns casos, foi permitido que terminassem em casa a fase final, de colorização. O material utilizado era simples: papel e lápis de cor, fornecidos pela escola aos alunos.
Os alunos produziram quadrinhos criativos, com roteiros sintéticos e agradáveis. Alguns optaram por histórias contextualizadas, com personagens fictícios. Outros trabalharam diálogos entre personagens anônimos que debatiam sobre o tema abordado. O importante, no entanto, foi o aproveitamento: eles conseguiram assimilar o conteúdo muito mais rápido. Alunos com baixo índice de aproveitamento em sala de aula foram capazes de transferir para o gibi assuntos complexos, como o patriarcalismo no Brasil colonial, de forma clara e objetiva.
A realidade editorial brasileira talvez contribua para isso, uma vez que os quadrinhos nacionais sobrevivem com parcos recursos e graças a insistência de alguns artistas, que conseguem divulgar seu trabalho através de pequenos espaços em jornais ou da produção independente. Esse preconceito pode ser derrubado introduzindo desde bem cedo as histórias em quadrinhos na vida das crianças. Na escola, esse processo pode ocorrer através da criação de gibitecas, num trabalho conjunto da comunidade com os professores. Na gibiteca eles irão criar familiaridade com esse tipo de arte e obter informações sobre artistas nacionais e seus trabalhos. Esse processo de divulgação de Histórias em Quadrinhos tem sido feito atualmente por apaixonados pela nona arte, como é o caso de André Diniz, que criou um site na internet, o Nona Arte, onde disponibiliza desde programas para criação de Histórias em quadrinhos até uma variedade imensa de Hq’s feitas por amadores e por artistas que já possuem alguma projeção no mercado nacional. André Diniz também se envolve em projetos educativos, relacionados às histórias em quadrinhos.
Os melhores resultados foram obtidos com os estudantes da sexta série. Eles se entusiasmaram e não se contentaram apenas em fazer a sua História em quadrinhos. Eles pediram para dividir o resultado de seu trabalho com outros colegas e outros professores da escola. Foi uma experiência nova para eles, criar personagens e diálogos e vê-los representados na forma de Histórias em quadrinhos.
Em suma, este tipo de recurso didático é de fácil aplicação, mas é imprescindível preparar o aluno para ela. Ele deve considerar a atividade tão importante quanto qualquer outro tipo de avaliação e deve, também, valorizar seu trabalho. O aprendizado é apenas uma das conseqüências. Estamos trabalhando a criatividade e, principalmente, a auto-estima (que vem com a valorização do trabalho e com o reconhecimento pelo esforço). O material utilizado vai variar muito de acordo com a realidade de cada escola. Em escolas de periferia, mais carentes de recursos, papel e lápis-de-cor são suficientes. Em escolas mais bem equipadas, os quadrinhos podem ser montados utilizando-se programas de computador feitos especialmente para essa finalidade. O resultado final, no entanto, supera as diferenças sociais e as dificuldades econômicas. É importante frisar a possibilidade de integração de conteúdos, através do trabalho conjunto com os professores de português e artes, que podem auxiliar o professor de história na atividade, orientando os alunos.
(texto integral publicado nos anais do XIV Encontro Regional da ANPUH-MG/2004)