terça-feira, 2 de outubro de 2007

Dampierre e a Guerra de Vendée: a Revolução Francesa nas Bandes Dessinées franco-belgas

Eu escrevi este texto em maio, para ser publicado em uma revista, mas apesar de aprovado, não tive retorno e não fui notificada de publicação. Então, para não desperdiçar um trabalho feito com empenho, resolvi postar algumas partes dele aqui, para leitura e comentários.


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Uma das características das Histórias em Quadrinhos (hqs) européias é a variedade de títulos e gêneros publicadas anualmente. A versatilidade é um dos pontos mais positivos dos autores europeus, com destaque para a produção belga e francesa. Um dos gêneros de grande aceitação entre os consumidores deste tipo de literatura é justamente o histórico. A arte se alia à ciência para levar ao leitor um entretenimento que assume uma tripla função: divertir, informar e educar.

Este gênero, alimentado pelo nacionalismo francês, oferece ao leitor a oportunidade de, através da união entre imagem e texto, viajar para o passado, da antiguidade aos tempos contemporâneos. Ao mesmo tempo que diverte, as bandes dessinées (como são chamadas as histórias em quadrinhos francesas) despertam a curiosidade dos leitores sobre os temas que abordam, levantam dúvidas, provocam debates sobre fatos e personagens que fazem parte do universo mental dos povos francofones. Na Bélgica e na França, este tipo de leitura é levada muito a sério. De obras biográficas a obras de ficção, o fato é que as hqs franco-belgas tornaram-se um instrumento de divulgação da história nacional. O passado ganha forma nas mãos habilidosas de artistas gráficos, que reconstituem cenários há muito desaparecidos e sobre eles criam tramas fictícias, envolvendo personagens reais e situações históricas.

Alguns dos contextos mais explorados são justamente o das revoluções. A Revolução Francesa, o Império Napoleônico e a Comuna de Paris são temas presentes em obras premiadas que já foram publicadas em vários países, inclusive no Brasil. Embora a diversidade e mesmo a grande qualidade da produção franco-belga não nos permita fazer uma relação e posterior avaliação de todo o material produzido sobre estes temas, selecionamos uma obra em questão: a série Dampierre, do belga Yves Swolfs.

De imediato podemos adiantar que Dampierre não é uma obra-prima do gênero e nem é uma hq excepcional. Como uma grande parte dos trabalhos realizados na França e na Bélgica, é sim, uma série de qualidade, tanto no que tange ao roteiro, quanto à arte. Um dos méritos da produção franco-belga é justamente o fato de que os autores lançam álbuns anualmente. Assim, há muito mais tempo para se debruçar sobre o texto, fazer as pesquisas necessárias para se compor o roteiro e trabalhar as ilustrações. Dampierre é um bom exemplo disto. É uma história em quadrinhos bem trabalhada, com uma excelente apresentação gráfica.

O autor e os desenhistas não têm compromisso com a narrativa histórica. É uma obra de ficção. No entanto, existe a preocupação em se apresentar bem o fato histórico que serve como pano de fundo para a trama central. Assim, uma pesquisa histórica é realizada para que a narrativa de ficção tenha consistência. Dampierre, portanto, é uma obra de ficção, composta sobre um pano de fundo histórico que, embora não comprometida com a realidade histórica, procura aproximar ao máximo imagem e texto do contexto histórico original.

O primeiro número de Dampierre foi lançado em 1987, pela editora Glénat. A série desdobra-se nos anos que seguem a Tomada da Bastilha, na França (1789). Conta a história do jovem Julian Dampierre, tendo como pano de fundo a Revolução Francesa. Dampierre é um jovem palafreneiro (membro de uma corte responsável por cuidar e conduzir, em cortejo solene, o palafrém, o cavalo em que os papas, reis e nobres faziam sua entrada solene nas cidades). Ele é enviado para uma pequena aldeia camponesa, na região oeste da França para servir como mestre de armas. Sem quer ele acaba se envolvendo na Guerra da Vendée. Este talvez seja este o grande mérito deste trabalho de Swolfs. O autor escolhe como pano de fundo para as aventuras de seu personagem um dos episódios mais controversos da Revolução francesa.

Neste contexto que se desenrola a trama do personagem, onde afloram as relações de poder locais, e os conflitos de interesse envolvendo rebeldes e republicanos, expondo as feridas da revolução e a fragilidade do novo governo. Dampierre, é um jovem muito ambicioso e acaba tornando-se uma testemunha do combate fratricida entre monarquistas e republicanos O protagonista não é um heróis tradicional, muito pelo contrário: é insensível aos ideais e aos sentimentos que estão em jogo. Seu único interesse é sua ascensão pessoal. Ao todo, a série teve 12 volumes e foi fruto de uma pesquisa meticulosa, tanto por parte do roteiristas quanto dos ilustradores (a série teve mais de um ilustrador).

A Guerra da Vendée, ou a Rebelião da Vendée, estourou em março de 1793, por conta do decreto da Convenção que ordenava o recrutamento de 300.000 homens. Católicos radicais, os camponeses do oeste jamais haviam aceitado a Constituição Civil do Clero. Para completar, a morte do rei havia causado um mal-estar profundo entre o povo, que considerou o ato criminoso. A ordem para o recrutamento foi a gota d´água para a eclosão de uma revolta, dentro da já insatisfeita comunidade da Vendée. A(s) Guerra(s) da Vendée ocorreram durante a Primeira República, entre os anos I e IV do calendário revolucionário (1793-1796). A Guerra teve muitas fases, com um breve período de paz na primavera de 1795. Em seu primeiro momento assemelhou-se a uma jacquerie camponesa. Enquanto que a Revolução triunfa em Paris, na Vendée o povo opõe-se aos ideais revolucionários que ameaçam os costumes e tradições religiosos.

Por envolver questões religiosas e políticas, este episódio da Revolução Francesa desperta muitos debates e controvérsias. Uma das idéias aceitas sobre a insurreição da Vendée é de que o partido monarquista teria incitado a guerra civil mediante as derrotas sofridas no exterior. O radicalismo religioso e a pobreza dos camponeses para quem o recrutamento significaria a fome – pois levaria os braços fortes dos jovens trabalhadores – teriam sido habilmente explorados pelo clero, aliado dos monarquistas. A região da Vendée tornou-se então palco de violentos e sangrentos combates. A Vendée é uma região a oeste da França com muitas florestas e de difícil acesso. A geografia do local permitiu aos camponeses, liderados por monarquistas, a organizarem emboscadas e ciladas para soldados republicanos. Foram três anos de sangrentas batalhas que levam milhares de franceses à morte.

A série Dampierre não foi publicada no Brasil, onde ainda predominam as comics norte-americanas. Mas nos últimos dois anos tem havido um movimento positivo no sentido de introduzir em nosso mercado as bandes dessinées. A exemplo disto, temos a publicação da obra de Hugo Pratt, o Corto Maltese (2006) pela editora Pixel e os dois primeiros álbuns da série “O grito do povo”, do escritor e cineastra Jean Vautrin e Jacques Tardi, pela editora Conrad (2004/2005). No Brasil carecemos também de incentivo para produção de material nacional de títulos históricos, como ocorre em outros países. Se nos países franco-belgas – e não penas neles -, as hqs históricas são valorizadas, falta a nós a iniciativa de transformar este gênero em um instrumento de informação e ensino. No passado, iniciativas deste porte foram apoiadas pelo governo. Atualmente poucos são os trabalhos que conseguem chegar nas prateleiras e bancas e livrarias.

6 comentários:

Anônimo disse...

As alternativas às leituras históricas são sempre bem vindas ao cenário das interpretações.

Eu trabalho pouco com estas temáticas, mas gostei do seu artigo. Fiquei inclusive curioso ao imaginar uma campanha de histórias em quadrinhos sobre a história do nosso Brasil.

Parabéns!

Natania A S Nogueira disse...

Obrigada!
Sou esperançosa em relação a isto. Acho que temos muita gente com potencial que já trabalho no ramo e que está apta a criar Hqs sobre história do Brasil. Aliás, muitas já foram criadas. Talvez fosse o caso de reuní-las em uma coletânia e distribuir pelas escolas. Com o interesse do MEC nas Hqs crescendo, pode ser possível.

Sindy disse...

Mais uma vez, parabéns Naty! Seu trabalho é fantástico! Enquanto não temos estas preciosidades sobre a história do Brasil, sigo divulgando a revolução Francesa!
Abçs
Sintian

Natania A S Nogueira disse...

Obrigada, Sindy!
Ainda vamos poder ter um bom material à nossa disposição. Aliás, eu acho até que este tipo de produção deveria ser destinada diretamente às escolas. Tipo, deveria haver um incentivo a quadrinistas e pesquisadores a desenvolverem este tipo de produção, não só ligado à história, mas a ciências, matemática, etc, já tendo em vista o uso didático.

Gládis Leal dos Santos disse...

Oi Natália,

Obrigada pela visita ao blog da escola, fico feliz que tenha gostado do trabalho com histórias em quadrinhos. Os alunos adoraram este tipo de atividade e trabalhamos aqui muito com quadrinhos, de diferentes maneiras. Já indiquei seu blog aos professores para que conheçam seu belo trabalho.Seu blog é uma fonte inesgotável de conhecimento sobre esta área, parabéns!

Sua admiradora
Gládis

Natania A S Nogueira disse...

Oi Gládis!
Eu realmente gostei muito do trabalho e, principalmente da apresentação que vcs fizeram. Preciso aprender a utilizar melhor os recursos do blog para poder mostrar o trabalho que os alunos tem feito, com quadrinhos.
Obrigada pela divulgação!
:-)