quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Os heróis em sala de aula




Por Marcelo Rafael
 
As aulas em todo o país retomam seu ritmo natural. E, além dos estudantes, os heróis também vão ao banco escolar. E não se trata da Escola Jean Grey de Ensino Superior (antiga Escola para Jovens Superdotados do Professor Xavier, local fictício das histórias dos X-Men), mas de muitas universidades pelo país onde os temas de quadrinhos, incluindo super-heróis, geram congressos, artigos científicos e debates.

Não é de hoje que a 9ª Arte vem sendo analisada academicamente. Estudos aprofundados tornaram-se grandes referências, como História da Caricatura no Brasil, de Herman Lima, e Shazam! e História das Histórias em Quadrinhos, de Álvaro de Moya. Os dois autores estão entre os maiores especialistas do País no assunto, tendo tratado de HQs em meados do século passado.

O tema segue atual. Tanto que uma capa do gibi do Capitão América, em que o herói soca a cara de Adolph Hitler, serviu como base para uma questão do último ENEM, em novembro de 2012.

Pode soar mais comum analisar questões de gênero na obra da quadrinista norte-americana Alison Bechdel, como o faz a doutoranda Renata Dalmaso, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ou então esmiuçar as percepções de outras culturas e de si mesmo e destrinchar as ideias de Ocidente/Oriente em Persépolis, da iraniana Marjane Satrapi, foco do mestrado de Thayse Madella, também da UFSC. Mas poucos imaginariam que as virtudes e vicissitudes de Superman ou de Batwoman pudessem render longas e bem-estruturadas teses.

Dalmaso, por exemplo, tem artigo publicado nos EUA sobre a minissérie 1602, que conta as histórias dos heróis ambientadas durante as Grandes Navegações. Em seu texto, ela analisa o revisionismo histórico realizado por Neil Gaiman (criador de Sandman, entre outros) ao abordar questões de gênero e sexualidade no universo heroico da Marvel.

Relações de gênero e representações do feminino também estão presentes na linha de pesquisa de Natania Nogueira, que trabalha com quadrinhos norte-americanos da primeira metade do século XX e tem cinco artigos publicados na área.

Com especialização em História do Brasil pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), ela versou, em artigo na revista História, Imagens e Narrativas, sobre representações femininas em HQs aqui no Brasil, no período da extinta EBAL (Editora Brasil América). Seu primeiro trabalho nessa linha de pesquisa foi sobre Angelo Agostini, o piemontês radicado no Brasil considerado o criador dos primeiros quadrinhos no país, ainda no reinado de D. Pedro II.

Sávio Roz, graduado em História pela Universidade Federal de Salvador (UCSAL), também analisou o feminino nos gibis, especialmente em relação à Mulher-Maravilha. Mas seus estudos vão além, enveredando para outros personagens e seus paralelos com o mundo fora dos gibis.

“Os quadrinhos de super-heróis são um dinâmico jogo de relações entre realidade e imaginário, dosando aproximações e afastamentos com a realidade. Então temos ‘passeios’ entre campos sociais, culturais, políticos, etc.”, explica Roz.

Além das questões de gênero, a História também é outra área bastante usada para analisar a 9ª Arte. Thiago Monteiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), após uma série de artigos sobre vampiros, ufologia e Role Playing Games, engatou no estudo de Quadrinhos com a monografia Supersoldados e Nação: Uma Análise das Representações de Heróis e Vilões nas Histórias do Capitão América, nos Estados Unidos da década de 1960.

A política foi o tema de seu segundo trabalho, Sob o Manto do Morcego: Uma Análise do Imaginário da Ameaça nos EUA da Era Reagan através do Universo Ficcional do Batman.
 

Roz também seguiu por diferentes caminhos dentro das análises: o Pantera Negra e sua relação representativa dos afrodescendentes nos EUA, a apropriação do uso do deus nórdico Thor nas HQs e até mesmo as tradições medievais nas idealizações de Superman estão entre os seus trabalhos.

Mesmo parecendo um tema tão consolidado, resolver estudar algo que, para muitos, ainda soa apenas como puro entretenimento gera resistência. “A maior dificuldade era eu, um aluno de graduação, então com 19 anos, convencer o corpo docente de que eu não estava simplesmente querendo brincar de ler gibi”, conta Monteiro sobre seus primeiros passos.

“Temos uma Academia densamente povoada por tradições impositivas, um corpo de produtores e pensadores que se apavoram quando se defrontam com o novo”, completa Roz.

Ele exemplifica com o caso de um professor da faculdade que, ainda no primeiro semestre, exigiu-lhe “manter-se em sua insignificância” de conhecimento diante de temas como o marxismo. No semestre seguinte, o mesmo professor desmereceu a camiseta que Roz usava, estampada com o emblema de um super-herói ao peito. Prontamente, Roz rebateu: "O senhor conhece esse personagem a fundo? Já leu as produções que o têm como protagonista?". Ao que o professor respondeu: "Não". Roz sugeriu: "Se não conhece o assunto, é mais seguro se manter em sua insignificância. Este assunto eu conheço e domino”.

Felizmente, muitos estudantes, país afora – e também no exterior – encontram professores que se empenham no assunto e oferecem orientação. Assim, Roz, Madella, Nogueira, Dalmaso e Monteiro podem seguir com suas pesquisas.
 
Vários estudos saíram da esfera acadêmica e ganharam linguagem mais acessível. As sugestões abaixo abordam a estrutura dos quadrinhos em diferentes países e outras análises sobre o assunto:

Muito Além dos Quadrinhos - Análises e Reflexões Sobre a 9ª Arte - Paulo Ramos e Waldomiro Vergueiro

Bienvenido - Um passeio pelos Quadrinhos Argentinos - Paulo Ramos

Mangá - Como o Japão Reinventou os Quadrinhos - Paul Gravett

Literatura em Quadrinhos no Brasil - Álvaro de Moya, Moacy Cirne, Naumin Aizen e Otacílio D'assunção

Prática de Escrita - História em Quadrinhos - Carlos de Andrade

A Guerra dos Gibis - Gonçalo Júnior

Os Iconográfilos - Teorias, Colecionismo e Quadrinhos - Agnelo Fedel


PUBLICADO NA SARAIVA CONTEÚDO, NO DIA 19 DE FEVEREIRO

Nenhum comentário: