sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Joana D' Arc e a Guerra dos 100 anos em Mangá

Jeanne, de Yoshikazu Yasuhiko
Por Alexandre Soares

Um dos fatos a se lamentar na chegada tardia dos mangás ao Brasil é que muitos grandes autores continuam inaceitavelmente inéditos em nosso país. Alguns sofreram certas injustiças – mesmo Tezuka foi esnobado nas bancas, sendo tratado com respeito pelos leitores apenas bastante tempo depois, nas livrarias. Outros, permanecem desconhecidos, mesmo que estejam por trás de obras de renome – especialmente pela preferência dos leitores por tudo que é novidade.

Yoshikazu Yasuhiko é um deles. Character designer da série Gundam original, e autor de leituras fundamentais dos mangás nos anos oitenta como Venus Wars, sua obra permanece longe de nossas praias. Mas sua obra não perdeu a validade, e um dos seus trabalhos mais interessantes foi publicado pela extinta editora Comics One nos Estados Unidos: Jeanne (Joan, nos Estados Unidos). Que se destaca no meio dos mangás pelo fato de ser um raro mangá... completamente produzido a cores, aquareladas pelo próprio autor.

Jeanne não é exatamente uma biografia de Joana D'Arc, embora sua vida sirva de fio condutor para a compreensão da história a medida em que ela avança. Nossa protagonista aqui é Emil de Baudricourt, filha bastarda do Duque da Lorena. Com sua morte, a Duquesa Margaret da Lorena se vinga de forma cruel e brutal da amante do marido, e para proteger sua vida, a pequena Emily tem que se passar por um menino, sendo adotada sob o nome masculino de Emil por Robert de Baudricourt, Capitão da Comuna de Vaucouleurs (no original, Commune – a menor unidade administrativa na França. Não custa lembrar que esse tipo de unidade foi oficializada apenas a partir de 14 de dezembro de 1789, portanto não haviam comunas na Idade Média, num pequeno furo de pesquisa de Yasuhiko. Mas sigamos adiante).

O que poderia ser mais uma reciclagem de um tema batido nos mangás e animes ganha outras conotações. O destino de Emil está ligado à legendária Joana D'Arc. Ainda criança, ela teve uma visão do espírito de Joana no castelo do Duque. E Baudricourt foi justamente o homem que a encaminhou ao então Delfim Carlos.

O encontro marcou Emil, que cresceu antevendo seu destino. E ele chega quando o ambicioso Delfim Luís se posiciona contra o próprio pai, o agora rei Carlos. Emil parte em missão no lugar de seu pai adotivo Baudricourt, carregando a bandeira real, e traçando a mesma rota oeste que Joana percorreu. Na vila de Domremy, onde Joana cresceu, Emil encontra sua aparição mais uma vez, após tantos anos. Joana se manifesta como uma simples camponesa, com um único pedido: "Proteja o Rei, como eu fiz, não importa o que aconteça." E assim, a história verdadeiramente começa.

Jornada de Esperança

A Guerra dos Cem Anos se encaminhava para um final. A França sobrepujou sua maior crise graças ao "Milagre de Joana D'Arc" e gradualmente recupera seu território sob o novo rei, Carlos VII. Entretanto, o mundo não mostra confiança em um "rei fraco" como Carlos, e os nobres que o puseram no trono em Reims, com Joana, estão alinhados ao Delfim Luís. O Reino da França está dividido em facções ligadas por laços feudais. Nesse contexto, a delegação de Emil para representar Baudricourt acabou por enfrentar muita resistência. Bertrand, que no passado seguiu Joana e agora segue Emil, a ajuda em sua missão. Entretanto, Emil é presa como "hóspede" em Órleans, sendo confrontada pelo cruel Delfim Luís – que a identifica como uma mulher disfarçada de homem. No cativeiro, Joana faz uma nova aparição a Emil, e a ajuda a fugir. Seu caminho a leva para Tours, cidade que apoia o Rei Carlos. Lá, ela o encontra e se dá conta da verdade: Carlos realmente não inspira confiança, morrendo de medo do Delfim – e é apoiado por um exército fraco.

Não deixa de ser curioso: as histórias contadas a respeito de Joana D'Arc sugerem que Carlos era um fraco que ganhou hombridade após conhecer Joana. O quadrinho parte do princípio que ele de um Delfim fraco se tornou um rei fraco. Não custa lembrar que quando Luís (XI) se tornou rei, fez seu nome na história como um rei forte e de pulso, embora mau-caráter e revanchista. E como para se construir uma imagem, você ou se ancora no antecessor ou se constrói por oposição – e como rei, Luís XI perseguiu todos os partidários do pai, apesar do final do mangá sugerir uma mudança de postura e de caráter. Mas ficção é ficção e história é história. Quem era Carlos VII na verdade? É difícil saber.

Em todo caso, ao descobrir que o exército precisa desesperadamente de recursos, Emil se voluntaria para procurar o apoio financeiro do rico aristocrata Gilles de Rais, que já foi companheiro de Joana. A partir daí, a história ganha tons mais sombrios: Gilles, marcado pela horrível morte de Joana na fogueira, se tornou mentalmente instável, abandonando-se à bebida, glutonaria e depravação, tendo caído sob influência de um "bruxo" local. O detalhe é que na vida real a história foi mais assustadora: Considerado um dos precursores dos assassinos seriais de nossos dias, Rais era um bissexual que se separou de sua esposa e que reuniu uma corte de bruxas, alquimistas e sádicos, gastando sua fortuna em obras de arte relacionadas à finada Joana D'Arc, cuja morte claramente o traumatizou.

Ao cair da noite, eles levavam crianças previamente sequestradas para serem torturadas, estupradas e mortas. Descoberto por conta de uma investigação, ele assumiria sua culpa em um transtorno de personalidade – e como ele documentava pessoalmente todos os seus atos, logo veio à tona a morte de mais de 200 crianças em suas mãos (embora hoje se tenha como certo de que foram bem mais; o fato é que entre 1432 e 1440, mais de mil meninos entre 8 e 10 anos desapareceram na região da Bretanha). Yasuhiko sintetizou essa massa de bruxos e sádicos em um único personagem, talvez por comodidade narrativa – e a influência desse personagem sobre Rais quase leva nossa protagonista à morte.

Fazendo Gilles cair em si (é ficção, gente), ele apóia financeiramente o rei – e isso leva a um confronto armado entre as forças que apoiam Carlos e as forças do Delfim Luís, na batalha de Loche. Os exércitos pró-rei vencem; e após esse sucesso, Emil vai o buscar apoio do duque Jean II de Alençon. No entanto, num ato de traição (justificado na história por rancor contra Carlos pelo que aconteceu com Joana), ele extermina a comitiva – aprisionando Emil para enviá-la, como prisioneira, ao Delfim. E, será que, prisioneira, ela terá o mesmo destino de Joana? Não, não vamos contar o que acontece a partir daqui.

Entre história e ficção

Jeanne é um quadrinho adulto. Lida com as marchas e contramarchas políticas em termos realistas, o que é uma característica constante nas obras de Yasuhiko – como Venus Wars, por exemplo – mas também trata de temas espinhosos – falamos da Idade Média, onde violência, estupro, e uma norma social asfixiante estavam na ordem do dia. Diferente de obras como Berserk, no entanto, Jeanne não faz da violência um espetáculo e não precisa do choque pelo choque para se passar por adulto – em termos gráficos, nada é excessivo, embora definitivamente a história não seja recomendada para crianças. Mesmo a única cena de nudez da história, no último volume, está lá porque é crucial para o andamento dos fatos e se justifica por isso. E não custa lembrar, é desenhada sem o menor apelo erótico, com o realismo que a cena pede.

É curioso ver que Yasuhiko não apela para o fanservice nem quando o roteiro dá margem para tal. Elementos como a clássica "garota apaixonada pela garota vestida de garoto" até aparecem, mas os fãs de shoujo-ai (romances homossexuais entre garotas) vão levar uma bela patada com a resolução da situação.

Moças de treze anos (que aparecem desenhadas em dimensões realistas, sem erotização precoce), casadas contra a vontade com homens muito mais velhos, são tratadas como o que eram: norma socialmente aceita, não fetiche para leitores de gosto questionável. Apesar do elemento de misticismo que permeia a história, a história é pensada em termos realistas; os personagens são o que são, sem filtros culturais locais (como costuma acontecer quando japoneses falam do ocidente. Alguém se lembra da absoluta falta de noção quando o cristianismo foi usado como tema na fase "filler" do anime de Samurai X?).

O verdadeiro motivo de drama interno e auto-questionamento para Emil é justamente a dúvida entre o livre arbítrio e a fé no divino – especialmente quando a sensação que o leitor tem é de que, a cada passo, essa mesma fé pode levá-la diretamente à fogueira: tudo já aconteceu antes e os relatos daqueles que encontraram Joana em vida tendem apenas a reforçar isso. A própria identidade masculina que lhe foi imposta tem mais o perfil de um fardo, que mesmo sendo envergado com hombridade e dignidade, ainda é um fardo a ser carregado – e que ela não questiona; de certa forma, essa identidade é a armadura de batalha que ela tem que vestir em nome da missão que lhe foi imposta, e que, apesar dos pesares (que não são poucos), é um dever que tem que ser cumprido. O final da história deixa bem clara a postura da personagem quanto a esse aspecto.

Yasuhiko toca nestes temas com tanta propriedade e compreensão que chegamos a nos perguntar se ele não seria católico – Porque ele sabe do que está falando e isso se reflete até na construção de seus personagens. Não custa lembrar: esta não é a única incursão histórica que ele fez em sua obra, e entre outros trabalhos seus há uma versão em mangá da vida de Jesus Cristo.

Um Pouco Sobre o Autor

Yoshikazu Yasuhiko (que usualmente assina suas ilusrações como "Yas"), nasceu em 9 de dezembro de 1947 e fez história no mundo dos animes. Tendo entrado na Mushi Produções de Osamu Tezuka como animador, ele posteriormente se tornou um artista freelance e trabalhou para vários longa-metragens e séries de televisão. Seu currículo inclui séries como Combattler V, mas sua fama veio com a série original Mobile Suit Gundam de 1979. No ano seguinte, suas ilustrações para os livros de Haruka Takachiro introduziram o character design original da popular dupla de personagens Yuri e Kei de Dirty Pair – que acabariam cedo ou tarde ganhando as telas de televisão.

Artista polivalente, ele se revelou como autor de livros de ficção científica durante os anos oitenta, além de ser aclamado como ilustrador, mas só entrou no mundo dos mangás em 1988. A obra prima que o aclamaria – um dos melhores mangás dos anos oitenta e talvez um dos melhores mangás de ficção científica de todos os tempos – seria Venus Wars, que adaptou a temática militarista das histórias de guerra com mechas a um cenário de ficção científica mais ortodoxo. Em Venus Wars, o planeta se tornaria habitável graças ao choque de um objeto celeste que mudou a composição de sua atmosfera e sua órbita.

Com o tempo, os humanos os habitariam e formariam suas próprias nações – que entrariam em guerra. De um lado, gigantescos tanques; do outro, motos blindadas de combate. E no meio de tudo, a história de um piloto de motos que é arremessado em meio a eventos do qual ele é só um peão, onde as verdadeiras decisões são tomadas lá em cima. O tema da pessoa comum que tem que seguir seu caminho em meio à uma rede política de eventos sob o qual ele não tem controle parece uma constante em sua obra, e pode ser encontrado inclusive em Jeanne, onde Emil tem que trafegar entre pessoas de poder que podem esmagá-la a qualquer momento.

Em 1992 ele foi premiado com o Nippon Manga-ka Kyokai Award – da sociedade de ilustradores do Japão. E atualmente vem trabalhando no mangá Mobile Suit Gundam: THE ORIGIN, onde ele reconta a seminal história de Yoshiyuki Tomino à qual ele deu vida visualmente nos anos setenta, atualmente no 13º Volume, publicado pela antologia Gundam Ace da editora Kadokawa Shoten. É um material que já nasceu fundamental: a história original do anime já foi adaptada para o mangá no passado, mas por equipes não tão dignas de nota, mesmo que competentes. O Criador visual de Amuro, Char e toda uma iconografia de personagens que fez história, hoje é um quadrinhista com bagagem, que transcende o fato de ter feito uma obra de nota nos anos setenta e conquistou seu espaço posterior pelo próprio mérito.

Ler esse material sendo produzido, em seu próprio ritmo e sem condensações que fazem muitos mangás criados como adaptação de animes parecerem um mero resumo feito às pressas, por um autor que domina o ofício de escrever e que foi um dos criadores originais do clássico que está sendo adaptado, dá ao material uma autenticidade única. E pensar que por causa da má impressão dada pelo pavoroso Gundam Wing em nosso público, talvez jamais vejamos Gundam The Origin em nossas livrarias um dia – porque não se iludam, é material para livraria. Os volumes têm em média de duzentas a duzentos e setenta páginas, e cada capítulo publicado na Ace tem em média oito páginas coloridas. Não dá para se publicar isso de qualquer jeito por aqui. E isso vale para boa parte de suas obras, depois que ele passou a manifestar uma preferência clara por histórias pintadas.

Yasuhiko é um dos autores que já deveriam ser conhecidos dos nossos leitores há muito tempo. E Jeanne é uma obra que seria muito bem-vinda por aqui. Não deve ser vista como uma ficção 100% histórica: a trama não é datada pelo autor, mas é dito que a primeira esposa de Luís, Margarida da Escócia, tem treze anos; então, teoricamente ele teria quinze anos, mas é apresentado visualmente como um homem adulto e a história se passaria em 1438; e para complicar, as rebeliões encabeçadas por Luís só começariam em 1440 e prosseguiriam, com idas e voltas, até meados da década de 1450.

O mangá sugere, em contrapartida que as rebeliões de Louis terminariam ali. Além do mais, temos a presença de Agnes Sorel já como amante oficial de Carlos – quando na verdade ela só entrou na corte depois de 1440, e foi tornada amante oficial em 1444. Não é preciso ir muito longe para concluir que ele tomou liberdades dramáticas imensas com o material que tinha em mãos.

Mas como roteiro, como arte, como história em quadrinhos, é um material de primeira linha; e num momento onde os mangás parecem começar a conquistar um espaço nas livrarias, não custa nada ter esperanças. Jeanne – e Yoshikazu Yasuhiko – merecem.

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