SÃO PAULO - O Pato Donald já foi à Bahia. E ao Rio de Janeiro. Isso faz tempo, há mais de 50 anos, e quem bancou o guia turístico foi Zé Carioca, personagem criado por Walt Disney no início dos anos 1940, em uma estratégia conhecida como política de boa vizinhança, cuja finalidade era estreitar os laços comerciais entre os Estados Unidos e os países da América Latina. De chapéu, paletó, gravata e guarda-chuva, o tal papagaio carioca nunca pareceu muito à vontade sob o sol escaldante do Rio de Janeiro. Mesmo sambando com o amigo americano Donald ao som de "Tico tico no fubá" no desenho animado "Alô, amigos", de 1942.
A simpática ave só viria a se tornar um carioca, mesmo, na década de 1970, nas histórias em quadrinhos escritas pelo paulista Ivan Saidenberg (que morreu na última quarta-feira, em decorrência de complicações do diabetes e insuficiência arterial) e ilustradas pelo gaúcho Renato Canini, que abrasileirou o personagem americano. Mesmo, ironicamente, sem nunca ter vindo ao Rio de Janeiro.
- Ainda não conheço o Rio e sempre desenhei a cidade por cartão-postal - diz Canini, rindo, em entrevista por telefone, de Pelotas, cidade em que vive há 13 anos.
O Zé Carioca não foi o único trabalho do gaúcho. Ele também foi um notável criador de personagens, como Zé Candango, cangaceiro que enfrentava heróis americanos. Ou Kaktus Kid, coveiro que colocava uma peruca, uma dentadura e dava uma de caubói para arrumar clientes. Ou o indiozinho Tibica. E ainda o psicanalista Dr. Fraud. Isto sem contar sua passagem pela revista infantil "Recreio", que fez - e continua fazendo - a alegria da garotada.
Histórias são consideradas fase áurea do personagem
Nascido há 73 anos em Paraí, no Rio Grande do Sul, Canini será o homenageado da sexta edição do Festival Internacional de Quadrinhos, que começa na próxima terça-feira - e vai até o dia 12 - em Belo Horizonte. Além de uma grande mostra de trabalhos do autor, com curadoria dos desenhistas Lancast, Fraga e Rodrigo Rosa, haverá um bate-papo com ele na quarta-feira, às 20h, no Teatro João Ceschiatti (Palácio das Artes).
- No início dos anos 1970 houve dois tipos de infância: infância com "Recreio" e infância sem "Recreio" - lembra Lancast. - Cada página era uma explosão de cor e riso, um "maravilhamento" que toda criança devia ter. E, no fim de cada narrativa, ali, bem no cantinho, em letra de forma: desenho de Renato Canini.
O desenhista gaúcho lembra como começou a ilustrar a "Recreio":
- Fui funcionário público no Rio Grande do Sul, onde trabalhava numa revista chamada "Cacique", da Secretaria de Educação e Cultura. Comecei em 1957 e fui até 1967. Como também colaborava para uma revista da Igreja Metodista, fui convidado para trabalhar em São Paulo, onde fiquei dois anos com eles. Depois, estava pensando em voltar para Porto Alegre quando vi, nas bancas, a revista "Recreio". Eles não estavam precisando de desenhista, mas fui lá. Mostrei meus desenhos, eles gostaram e me contrataram.
Foi ali que Canini fez amizade com Ivan Saidenberg, Jorge Kato e Waldyr Igayara de Souza, diretor de arte da "Recreio" e ilustrador dos quadrinhos Disney (onde criou o Biquinho, o sobrinho do Peninha).
- Na Editora Abril tinha uma sala grande, onde ficava a "Recreio" e, em pouco mais da metade, o pessoal da Disney. Daí me ofereceram o Zé Carioca, que já tinha revista, mas quase não publicavam histórias com ele. Voltei para Porto Alegre e comecei a mandar histórias de lá. Desenhei o Zé Carioca de 1971 a 1976. Até que me demitiram - conta Canini, aos risos. - Com o tempo, a coisa mais chata do mundo é desenhar personagens dos outros. Lá pelas tantas a gente vai inventando e, com trinta e poucos anos, tinha a personalidade forte. Fui mudando o personagem, mudando, mudando... e me despediram. O engraçado é que os italianos fazem loucuras com os personagens Disney e eles deixam.
Mais de 30 anos depois, a passagem de Canini pelas histórias em quadrinhos do Zé Carioca é considerada a fase áurea do personagem. Tanto que a editora Abril, responsável pela publicação dos quadrinhos Disney no Brasil, já dedicou ao gaúcho um especial, editado por Paulo Maffia:
- Apesar de o Pato Donald ter sido criado por Walt Disney, quem lhe deu uma alma foi Carl Barks. O mesmo aconteceu com o Zé Carioca: quem lhe deu uma alma (e uma alma bem carioca) foi Renato Canini.
Ao mesmo tempo em que trabalhava com o papagaio malandro, Canini criou um indiozinho chamado Tibica para uma série de tiras e participou de uma revista chamada "Crás", só com personagens brasileiros, como Satanésio e Kaktus Kid.
- Como eu sempre gostei de faroeste, criei o Kaktus Kid. Mas quando estava melhorando o desenho, acabou a revista, que não chegou a dez números - diz o ilustrador gaúcho, que não para de trabalhar e prepara um livro de desenhos. - Estou fazendo um livro chamado "Pago para ver", com trabalhos que têm aparecido no site Tinta China (grafar.blogspot.com). São cerca de 200 desenhos, alguns de humor, outros sérios. É apenas sobre o Rio Grande do Sul e o gaúcho, uma espécie de caubói.
Autor de uma dissertação de mestrado chamada "Canini e o anti-herói brasileiro: do Zé Candango ao Zé - realmente - Carioca", defendida este ano, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, o ilustrador gaúcho Eloar Guazzelli diz que Canini é um artista extremamente original, capaz de elaborar temas bastante brasileiros com uma linguagem contemporânea:
- Ele é capaz de uma síntese visual rigorosa, mas que consegue, com poucos traços, fazer panoramas cheios de vitalidade. Canini representa uma escola de desenho que teve a felicidade de reunir nossas peculiaridades nacionais com as ousadias formais das artes visuais da segunda metade do século XX. Uma conquista digna dos melhores autores antropofagistas.
Renato Canini é de outros tempos, quando ainda não era comum ilustradores brasileiros como Fábio Moon, Gabriel Bá ou Rafael Grampá fazerem trabalhos autorais com personagens americanos. Há mais de 30 anos, ele não só fez de seu Zé Carioca um personagem do Rio, mas também inseriu, sutilmente e com bom humor, sua marca nas histórias em quadrinhos Disney num época em que não creditavam roteiristas e ilustradores brasileiros. Assim, não era incomum os leitores toparem, nos cenários dos quadrinhos que ele fazia, com estabelecimentos respeitáveis como "Cantina Canini" ou "Loteca Canini".
Fonte: O Globo
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