segunda-feira, 18 de maio de 2009

Disney, vida e fantasia de luzes e sombras


Quando estreou em fevereiro de 1940, Pinóquio, que acaba de voltar ao mercado em DVD comemorativo, não fez sucesso de público. Alguns atribuíram o fato ao tom "perturbador" ou "desolado" que diferia de Branca Neve e os Sete Anões, lançado no Natal de 1937 e consagrado como uma fantasia sobre a beleza virtuosa, e diferia mais ainda de Mickey Mouse, o personagem boa-praça que havia sido um marco inaugural do desenho animado em 1928. Walt Disney foi mais prático: o público estava interessado em assistir a ...E O Vento Levou, épico de amor em meio à Guerra Civil, um arrasa-quarteirão distribuído poucas semanas antes. Seja como for, Pinóquio trouxe prejuízo.Essa história, contada na biografia Walt Disney - O Triunfo da Imaginação Americana, de Neal Gabler (editora Novo Século, 944 págs., R$ 89,90, tradução de Ana Maria Mandim), catatau que acaba de sair no Brasil, chama atenção porque o filme já era uma adaptação adocicada de um livro infantil clássico, do escritor italiano Carlo Collodi. Disney pegou um personagem menor da história, o grilo, juntou fadas a ela, eliminou cenas consideradas "cruéis" e transformou o boneco de olhos de pinho num menino que aprende a lição do bom comportamento depois de viver enrascadas em má companhia. Mesmo assim, o público da época não viu escape suficiente ali.Quem acha que Disney se tornou a poderosa indústria que se tornou porque criou "um mundo de fantasia", feito apenas de finais felizes para iludir a criançada, precisa, portanto, rever sua opinião. Afinal, ela não explica sozinha por que ele continua a ser admirado pelas gerações seguintes e por adultos, inclusive críticos de arte da seriedade de Robert Hughes e Paul Johnson. Em outras palavras, não explica por que seus filmes ganharam o status de clássicos, palavra que designa perfeitamente seu estilo visual e a permanência de sua força, como se vê também na quantidade de interpretações - especialmente as psicanalíticas - que inspira até hoje.Reduzir Pinóquio (lançado agora pela Buena Vista em edição com dois DVDs) a uma historinha linear de triunfo é bobagem, como quase todos os grandes filmes de Disney. Pois a cena definitiva é aquela em que Pinóquio e Gepeto, seu criador e pai, conseguem? Com os malandros de rua, que o levaram a praticar vícios de muitas espécies, sobretudo o da mentira. Ou seja: se não fosse pelos ensinamentos trazidos no descaminho, assim como pelas advertências do Sancho Pança encarnado pelo Grilo Falante, Pinóquio não teria retornado à harmonia do lar. Se o desfecho é sempre reconfortante, é porque antes o público foi levado ao desconforto - e este também deixa marcas que o clímax não apaga."A vida se compõe de luzes e sombras", Disney disse, "e seríamos desonestos, insinceros e açucarados se tentássemos fingir que não existem sombras." Ele estava se referindo a Bambi, seu filme de 1942, em que quis combinar drama e delicadeza como ainda não havia combinado. Gabler conta que a sequência da morte da mãe de bambi foi desenhada pela equipe de Disney, mas que ele decidiu não incluí-la no filme. Alegou que seria "enfiar uma faca no coração" do público, e que apenas sugerir visualmente o acontecido - o som do tiro ao fundo, as silhuetas que desaparecem, a neve que cai no silêncio - seria melhor. Até hoje a cena comove dez entre dez crianças pequenas justamente porque as desconcerta - tal como em Rastros de Ódio, de John Ford, os adultos se desconcertam com John Wayne saindo da caverna onde viu o desfecho do rapto da sobrinha, sem que nós vejamos a imagem. O filme anterior a Bambi havia sido Dumbo, que não tinha o caráter épico que mais agradava ao cineasta, mas que também traz suas pequenas subversões. Depois da cena em que a mãe embala o elefante passando a tromba por meio da jaula onde foi aprisionada, cena que ainda evoca lágrimas nas crianças do século 21, Dumbo vive uma experiência que vai lhe revelar uma possibilidade de libertação. Qual? Ele e seu amigo ratinho - outra voz de consciência, só que encorajadora e não admoestadora - bebem vários litros de champanhe da tina onde pensavam ter água. Têm alucinações, como elefantes rosas flutuando ao som de jazz e se metamorfoseando em padrões coloridos. Quando acordam, estão em cima de uma árvore. A esperteza do ratinho, como a de Mickey, deduz: Dumbo pode voar com suas orelhas, e o que antes era estigma humilhante vai se tornar aceitação social. Qualquer pessoa de talento que não foi compreendida na juventude, por excentricidade, sabe o que é essa volta por cima. E quem hoje colocaria um porre no ponto-chave do roteiro?Mesmo Branca de Neve, cujo sucesso Gabler associa ao clima da Depressão, para o qual seria antídoto, tem muitas doses sombrias. A inveja sexual da rainha à beleza da adolescente é clara, e os métodos que usa para afastá-la como o envenenamento da maçã - que parece dizer a ela que o sexo é pecado, e não um prazer sem culpa - são, como se diria hoje, radicais, tanto quanto sua morte. E a ajuda que recebe vem de sete anões que, ao contrário do que temiam as crianças da época, e como se fossem contrapontos aos sete pecados nomeados pela religião, são simpáticos e encarnam virtudes como sabedoria e bondade; mesmo o abobado Dunga, motivo de reclamação recente dos "politicamente corretos", representa a doçura, do mesmo modo que Zangado é na realidade um desconfiado que deseja estar errado em sua desconfiança.Por baixo de sua fileira de chavões, de lugares-comuns como "o que importa é a beleza interior" ou "siga seu coração", Disney pôs sutilezas e inovações que o levam além da arte como mera fantasia moralizante. Isso se traduz naquilo que Gabler descreve em mais detalhes: as dúvidas e mudanças feitas durante a produção de cada filme, incluindo diversas brigas com seus desenhistas e roteiristas, em busca de enredos fluentes, personagens com profundidade, mistura calibrada de passagens cômicas, líricas e dramáticas. Era nesta ordem, por sinal, que os trabalhos eram feitos - as passagens dramáticas ficavam para o final porque exigiam mais "sofisticação", segundo Disney.Esse aspecto, a linguagem, não é nada secundário. Há uma combinação de simplicidade e sofisticação no mundo figurativo de Disney. Ao contrário de muitos artistas mesmo do cartum e dos quadrinhos, ele não teve influência direta de algum grande mestre do passado ou de sua época. Era fã de tiras em quadrinhos nos jornais como Gato Félix e de propagandas; e foi assim que começou sua carreira como desenhista. No começo tinha uma certa afetação "art nouveau", alguns floreios, e depois foi assumindo linhas mais limpas. (O mesmo aconteceu com sua assinatura, quando convertida em marca.) Eram traços econômicos, gráficos por natureza, mas as texturas dadas pelas cores e iluminação tornavam tudo mais apurado; Bambi foi um "tour de force" nesse aspecto, com cada turma de desenhistas ocupada com um personagem.Gabler mostra Walt Disney como uma espécie de Cidadão Kane, entre perfeccionista e nostálgico, ao mesmo tempo doce e duro com os funcionários, feliz apenas no trem de brinquedo que tinha no quintal. Era teimoso (diante de observações como a da mulher, "Quem vai querer ver um filme com anões?"), gastava muito em tintas e "storyboard" (rejeitava repetir o fundo das cenas), tocava projetos demais simultaneamente. Mas sempre soube se reinventar, mesmo depois da longa estiagem dos anos 40, quando concorrentes como a Warner Bros. tomaram a vanguarda com filmes mais irônicos ou ambivalentes.Nos anos 50, começando por Cinderela, que incorporou um musical à história, ele voltou a falar com o grande público. Realizou velhos projetos, como Alice no País das Maravilhas e Peter Pan, e ficou mais água-com-açúcar em A Bela Adormecida e A Dama e o Vagabundo, este uma lembrança de sua primeira e eterna admiração por Charlie Chaplin, pela maneira enganosamente simples de encadear gags e reviravoltas mexendo com os impulsos sentimentais e cômicos igualmente. Seu cinema faz parte dessa grande arte comercial anglo-americana, que encantou o mundo por sua vitalidade, por uma jovialidade que, de certa forma, abriu caminho para a contracultura - na qual houve o reconhecimento de que em cada adulto há uma criança e é saudável liberar sua voz de vez em quando. Não à toa John Lennon admirava Lewis Carroll como Disney admirava.Não faz sentido fazer como o hiperconservador Paul Johnson e comparar Disney com Picasso, como fez em Os Grandes Criadores, ele que também tem um livro chamado Para o Inferno com Picasso. Disney não foi um revolucionário das artes visuais. Mas consolidou um novo tipo de arte, o cinema de animação, e com grande qualidade técnica na maneira como "antropomorfiza" animais, dando-lhes uma identidade humana. Porém, há quem veja nisso uma tentativa de controlar a natureza pelo comodismo e infantilização - ou algo equivalente ao Monte Rushmore, em que a natureza é transformada em história, no passado clássico que os EUA não tiveram como o Velho Mundo, com o esculpir dos fundadores republicanos na montanha romântica. Não. É apenas um filme para crianças - e crianças, como se sabe, são atraídas por bichos e sonhos. Disney, segundo Gabler, sempre teve a preocupação de não ser naturalista demais, de acrescentar algo imprevisível nas figuras e nas tramas. É esse meio caminho entre realismo e fantasia que atingiu de modo único. Num século em que os contos de fada foram ridicularizados pela arte moderna e pelos freudianos como instrumentos de alienação, ele ajudou a manter a força da imaginação visual, da cena que perdura na memória pelo desenho e pelo instante em que acontece, atingindo as pulsões pueris.Ele morreu em 1966, aos 65 anos, ciente de que tinha erguido uma obra que continuaria viva, independentemente de parques temáticos e escalas industriais, da conversão de sua arte em commodity. Sua herança de histórias infantis com antropomorfismo e inventividade tem diversos seguidores, em destaque nos excelentes filmes da Pixar (como Monstros S.A., Procurando Nemo, Ratatouille e Wall-E); mas, se perderam parte do tom ingênuo, eles tampouco são capazes dos mesmos momentos dramáticos. Como em tudo, e no próprio Walt Disney não seria diferente, luzes e sombras caminham juntas.

Fonte: Estadão

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