domingo, 20 de dezembro de 2009

História, em quadrinhos


Personagens e temas históricos estão virando assunto de muitos quadrinhos. Agora, entram também nas escolas

Julio Bezerra

D. João, Revolta da Chibata, Santos Dumont, Inconfidência Mineira, Dia do Fico... Não necessariamente nesta ordem. Mas tudo em quadrinhos. Nos últimos anos, as HQs vêm conquistando a literatura, ganhando prêmios e vencendo preconceitos. E estão se aproximando da História: cada vez mais lançamentos adaptam temas históricos para a linguagem dos quadrinhos. Até o MEC já se rendeu.

Antes de se conhecer uma curta lista de algumas dessas adaptações, convém puxar o fôlego: A Revolta da Chibata (Olinto Gadelha e Hemetério), História do Brasil (Jota Silvestre, Celso Kodama, Laudo, Omar Viñole e Edson Rossatto), A Inconfidência Mineira e A Guerra dos Farrapos (coordenados por André Diniz), D. João Carioca, Debret em viagem histórica e quadrinhesca ao Brasil e Santô e os pais da aviação (Spacca), Passos Perdidos, História Desenhada (Amaro Braga, Danielle Jaimes, Roberta Cirne e Diva Mello). Todos esses (e muitos outros), somente de 2006 para cá.

“Essa tendência faz parte de um longo processo de valorização dos quadrinhos: o surgimento das grafic novels, as adaptações de clássicos da literatura, o aproveitamento dos personagens dos quadrinhos em outras mídias, como o cinema etc.”, explica o professor Waldomiro Vergueiro, coordenador do Núcleo de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicação e Artes da USP. “A História, ou melhor, a nossa História, é rica em fantasia, ficção e terror. Não precisamos inventar tanto para ter boas narrativas”, completa Amaro Braga, professor da Federal de Pernambuco (UFPE) especializado em quadrinhos.

Não é de hoje que se tenta contar a História do Brasil em quadrinhos. Os mais velhos devem se lembrar das edições lançadas pela Editora Brasil-América Ltda. nos anos 1950 e 1960. Publicações da Ebal retratavam episódios da saga brasileira nos traços naturalistas de Ivan Wasth Rodrigues e apresentavam biografias, como as de Rui Barbosa, Oswaldo Cruz e o visconde de Mauá. Acompanhando o espírito ufanista da época, tentavam convencer pais e educadores de que a arte seqüencial se prestava à veiculação de mensagens de alto nível para crianças e jovens.

“O grande problema”, explica Waldomiro, “é que a informação histórica se sobrepunha à linguagem gráfica, resultando em uma leitura nem sempre muito atraente. O que você tinha era a ilustração do discurso histórico. Ou seja: o aproveitamento da linguagem dos quadrinhos era limitado. Hoje em dia, é muito mais completo: a linguagem não se subordina ao objetivo didático, mas dialoga com ele em pé de igualdade. O compromisso primeiro é com o leitor e com a arte seqüencial, o que, aliás, talvez seja a melhor estratégia para a sua valorização”.

Experiente nesse tipo de adaptação, Spacca explica que o segredo, para o ilustrador, é selecionar nos fatos históricos os ganchos dramáticos que permitam ênfases, cortes e ironias. Em Santô (2006), sobre a vida de Santos Dumont, ele decidiu ressaltar o fato de a crise criativa do inventor após o 14-Bis ter coincidido com o sucesso dos irmãos Wright – até hoje os americanos são considerados por seus compatriotas os pais da aviação. “A narrativa histórica fixa um limite de tempo e lugar e conta tudo o que aconteceu dentro desse recorte. O artista deve fazer um arranjo ‘orgânico’ a partir desse material. Os períodos de vitória e derrota, os altos e baixos compõem curvas e tensões como em uma sinfonia. Uma coisa leva à outra, as partes se encaixam, e há uma sensação de completude ou desenlace no final da narrativa artística”, ensina o ilustrador.

Sua obra mais recente, D. João Carioca (2008), produzida em parceria com a historiadora Lilia Schwarcz, vendeu nove mil exemplares e virou série de animação para a TV. Tudo fruto de um longo processo de pesquisa. “Procuro saber tudo a respeito do tema que estudo, não só os temas macro (mudanças políticas, fatores econômicos, idéias dominantes), mas também os que compõem o cotidiano, a tecnologia, o transporte, os hábitos alimentares, etc”. Mas não há um momento em que o artista e o professor entram em conflito sobre a melhor forma de narrar a História? Ele garante que não. “Nossos papéis são complementares. Atribuo essa harmonia a dois motivos: primeiro, Lilia é uma historiadora inclinada a valorizar e utilizar as referências visuais; segundo, concordamos com relação à maneira como a história deveria ser apresentada ao público. Não queríamos mostrar apenas o lado bizarro, grotesco, como fizeram ‘Carlota Joaquina’ e a minissérie ‘O Quinto dos Infernos’, sem deixar muito claro o que era ficção e o que não era. Achamos que faltava uma narrativa acessível ao grande público, mas que também fosse fiel à história, por si só fascinante e pitoresca”.

A proliferação das HQs sobre temas históricos não se conta somente em números de lançamentos, mas também na enorme diversidade de estilos e projetos. A História do Brasil da Editora Europa (2008), por exemplo, mostra a chegada da família real portuguesa ao Brasil, o Dia do Fico e a Independência a partir de uma situação fictícia envolvendo os personagens de um professor e três alunos. Mas o desafio maior parece ser o da equipe pernambucana reunida em torno do Centro de Desenvolvimento e Incentivo Cultural às Histórias em Quadrinhos (CDICHQ). No ano passado, eles começaram a adaptar para o formato teses e monografias acadêmicas. “A academia produz muita informação e conhecimento. Nosso intuito é escoar esta produção até um público que dificilmente teria acesso a ela”, diz Amaro Braga. Já viraram quadrinhos a tese de doutorado de Tânia Kaufman sobre a presença judaica em Pernambuco e monografias de José Antônio Gonsalves de Mello sobre personagens históricos do estado. Os discursos acadêmicos ganharam linguagem atraente, sem perder o rigor histórico. “Os textos em sua estrutura estão lá. Não há uma ‘simplificação gramatical’. Não troco as palavras ‘difíceis’. Não corto as referências às teorias. Apenas assimilo a informação e a transformo em imagem”, explica Braga.

Claro que o ambiente mais promissor para essa mudança na forma de contar a História é a escola. E o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) vem investindo nesse potencial. Criado em 1997, o PNBE seleciona obras de referência em vários gêneros para serem distribuídas nas escolas das redes públicas estaduais e municipais. A cada ano aumenta o número de quadrinhos na lista. Em 2006 foram 14. No ano seguinte, 16. Em 2008 chegaram a 23. Por meio de sua assessoria, o Ministério da Educação justifica o crescimento: “A leitura de obras em quadrinhos demanda um processo bastante complexo (balões, ordem das tiras, onomatopéias, etc.), o que contribui para a independência do leitor na interpretação dos textos lidos. Além disso, o universo dos quadrinhos faz parte das experiências cotidianas dos alunos. É uma linguagem reconhecida bem antes de a criança passar pelo processo de alfabetização”.

A chancela do programa federal serve para alavancar as vendas: Santô, por exemplo, vendeu cerca de seis mil exemplares em livrarias e teve 32 mil adquiridos pelo PNBE. Dá para imaginar a corrida das editoras para aproveitar esse filão. O que merece certa dose de cautela. Por melhores que sejam as obras, não adianta colocar os quadrinhos nas bibliotecas escolares se os professores não sabem como usá-las. “Essa diversidade de HQs assusta os professores. Tem o quadrinho paradidático, que se refere a situações históricas e se mostra o mais fiel possível ao fato. E tem aquele que usa o ambiente para contar uma história não necessariamente fiel. Ambos podem ser utilizados. As obras que não têm um compromisso mais rigoroso com os fatos podem ser objeto de discussão, buscando os anacronismos, os erros, os aspectos ideológicos. Mas os professores têm que saber diferenciar essas obras”, ressalta Waldomiro Vergueiro.

Essa é uma das missões de seu Núcleo na USP. Em 2004, Waldomiro coordenou o livro Como usar as histórias em quadrinhos em sala de aula (Editora Contexto), direcionado a professores do ensino fundamental e médio. Agora, está finalizando um segundo volume, que deve ser lançado entre fevereiro e março. “Estamos discutindo o aproveitamento a partir de gêneros, e não a partir de disciplinas. E cada capítulo tem como norte os títulos selecionados pelo PNBE. Partimos da premissa de que as escolas vão receber esses álbuns, e nosso objetivo é mostrar algumas alternativas aos professores”.

Enquanto os adultos debatem a melhor forma de fazer, crianças e jovens estão na deles: só esperam pelos próximos lançamentos para continuar com a diversão. E o aprendizado.

Fonte: Revista de História

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