domingo, 7 de junho de 2009

Igualdade na prática


Bem longe do “bom selvagem”, índios são protagonistas de HQ de André ToralPara uma melhor leitura de “Os Brasileiros”, é bom ter em mente os índios heróicos do modernismo ou os coitadinhos do senso comum “bem intencionado”.

Assim, é mais fácil de concretizar dos planos do autor da HQ, o antropólogo André Toral: surpreender pelo contraste.São sete histórias, produzidas entre 1991 e 2008. O elemento unificador do material, esteticamente variado, é a temática do choque de civilizações, que envolve os povos indígenas brasileiros. Choque retratado em diversas manifestações, distantes umas das outras no tempo e no espaço.

As histórias contemplam desde os primeiros anos da “colonização” aos conflitos contemporâneos na Amazônia.O jogo da leituraÉ difícil escapar das artimanhas do autor. De fato, como leitura, “Os Brasileiros” chama a atenção pelo despontar de um elemento indígena que nos é pouco familiar. O leitor apressado pode pensar que o autor transporta para a mata o clima daquele gênero de filmes brasileiros que vem sendo chamado de “Favela Movie” (“Cidade de Deus”, “Tropa de Elite” etc).

Afinal, ali não estão os índios acuados pela devastação dos invasores, mas índios que reagem, valendo-se da violência, ou que negociam com este explorador, sendo, por vezes, cúmplices de seus crimes.Esta, contudo, é uma leitura preguiçosa da obra. Escrevendo ficção, André Toral caminha em direção ao método etnográfico.

Tanto quanto os brancos, os índios são retratados como homens, com seus próprios valores, costumes e práticas. Diferente de muitos estudos antropológicos, “Os Brasileiros” concretiza a intenção do autor que busca o estranhamento - e que, para tanto, coloca o leitor contra a parede, para não deixá-lo fugir.

A estratégia de Toral foi retratar a relação entre estas civilizações em momentos críticos, de conflito bélico - seja em meio a guerras, seja nos fazendo acompanhar bandeirantes traficantes de índios ou nos fazendo testemunhas dos crimes que se perpetram nas selvas amazônicas.Na dimensão da linguagem, “Os Brasileiros” é um trabalho heterogêneo: tempos de produção diferentes imprimiram marcas gráficas nas histórias.

Parte das histórias é colorida, outras feitas em lápis e nanquim. O traço é limpo e firme, construindo anatomias perfeitas. Destaque para o cuidado com o texto, uma das fragilidades do quadrinho nacional.

ENTREVISTA / ANDRÉ TORAL

Você fala em ficção, mas ao mesmo tempo as histórias tratam de temas bem reais. Qual a medida da ficção e da realidade nestas histórias?

É difícil responder. Mas vou falar da diferença entre o romancista e o historiador, que costumo fazer em minhas aulas. Tanto um como o outro têm que recortar a realidade, têm que modificá-la e se adequar à página. O limite do historiador é seu compromisso ético de reconstituir o que aconteceu. O romancista também faz história, mas não se limita ao real. Uso roteiro de ficção baseado na história, numa tentativa de encantar o leitor, fazendo com que ele estranhe a história, para que possa redescobrir o sentido do mundo com o qual já estava acostumado. Por trás disso, tem uma postura antropológica: o estranhamento, que consiste em fazer o ordinário aparecer como algo extraordinário.

Você acha possível pensar numa etnografia em HQ?

Tanto acho, como já fiz. Minha tese de doutorado é uma HQ sobre a Guerra do Paraguai, publicada pela Cia das Letras (“Adeus Chamigo Brasileiro”). É uma história ficcional sobre quatro personagens que existiram. Há uma frase de Aristóteles que gosto de usar e explica bem a idéia. Ele dizia que a poesia é mais completa que a história, porque a história se remete a tudo aquilo que aconteceu, enquanto a poesia o faz a tudo aquilo que poderia ter acontecido.

Qual a relação que você mantém com os povos indígenas?

Bem, trabalho como antropólogo profissional, dando consultorias. Trabalho com os índios Karajá e com povos Tapirapé . Tem uma coisa sobre a qual você não perguntou, mas de que eu gostaria de falar: uma das histórias de “Os Brasileiros” se passa no Nordeste, em Pernambuco.Uma das características do álbum, e que você reforça no posfácio, é uma visão do índio como protagonista. Ainda assim, boa parte das vezes a narrativa é contada do lado do branco. Porque? Acho difícil me pôr na pele de um índio. O que procuro resgatar não é a maneira como eles pensam, mas como agem. Seria algo muito complicado. Por isso me utilizo de um fio condutor, que costuma ser o homem branco.

Você já teve retorno de leitores indígenas?

Nunca tive. Gostaria muito de saber o que eles acham. Esta é uma frustração minha. Maior que esta é a de que muita gente fala, mas pouca gente lê meu trabalho com atenção. Falo em ler no sentido de estranhar a imagem. Pouca gente comenta a história em termos de uma história em quadrinhos. Não existe uma crítica de HQ no Brasil e sinto muita falta disto. É muito aquela coisa do “eu te elogio e você me elogia”. Tenho dois leitores que pegam no meu pé e os adorava por isso. Um deles era o (quadrinhista) Flávio Colin (1930 - 2002), que apontou coisas importantes no meu trabalho - para o bem e para o mal.


* André Toral: Antropólogo, historiador e quadrinhista

Nenhum comentário: