domingo, 28 de junho de 2009

Polêmica na biblioteca


Começou com uma história em quadrinhos em São Paulo, passou por um romance em Santa Catarina e na semana passada teve ecos no Rio Grande do Sul a recente polêmica a respeito de que leituras crianças e adolescentes devem ter acesso por meio da escola. A questão vai além de casos específicos como os registrados no último mês (veja o quadro nesta página) e aponta para uma discussão mais candente: até que ponto os educadores cumprem seu papel como mediadores entre a produção artística e os alunos?

No Rio Grande do Sul, a questão foi saber se três álbuns em quadrinhos do artista americano Will Eisner – um deles o aclamado Um Contrato com Deus, marco das HQs – eram adequados para figurar nas bibliotecas de escolas estaduais. Comprados por um programa federal, os livros foram alvo de uma recomendação da Secretaria Estadual da Educação para que fossem retirados das estantes, por tratarem de temas como adultério, violência e pedofilia em imagens contundentes.

Uma recomendação veementemente contestada pelo cineasta e escritor Jorge Furtado, em artigo publicado em Zero Hora. Um debate que dá espaço à pergunta: há temas proibidos para estudantes?– Quem não quer falar sobre esses temas, a criança ou o adulto? – pergunta o psiquiatra e escritor para jovens e crianças Celso Gutfreind. – Isso é uma não-compreensão da criança.

Há cem anos, imperava a ideia de que a criança era um ser desprovido de maldade, de sexualidade, que não entendia nada. Vejo tudo isso como um resquício dessa história, ainda recente. É a necessidade de idealizar a criança como um reservatório da pureza, o que é diferente de vê-la e ouvi-la. Ela é curiosa e pode se interessar por qualquer tema, e não há calendário para isso.O próprio Gutfreind viveu experiências parecidas. Ao chegar a escolas para falar com a criançada, já ouviu a recomendação: não mencionar algumas de suas obras como O Pum, que traz a palavra “bunda” e Vovó não Vai para o Céu, que trata da morte – uma hipocrisia, na opinião do autor.Hipocrisia por quê?

O argumento é que a escola não pode funcionar como muralha para situações, termos e questionamentos que são da sociedade – e facilmente encontráveis do lado de fora: na internet, na TV ou até na esquina de casa. Uma opinião partilhada, no todo ou em parte, pelos defensores da escola como um fórum adequado para tratar de temas contemporâneos. A pedagoga Beth Serra, secretária-geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), é uma delas. Teme que tais episódios representem uma onda de conservadorismo que afaste a realidade da escola.

– Os professores têm que saber lidar com a realidade. Quando um tema aparece na literatura por que não aproveitar para tratar da questão?

Falta preparo, uma cultura de conhecer o texto literário. E aí a reação é conservadora ao novo, ao inesperado. E a defesa é o ataque.Nem todos partilham da mesma concepção. Embora concorde que a escola, por despreparo dos professores, muitas vezes abdica do papel que seria o seu, o de mediar o acesso ao conhecimento, o professor César Aparecido Nunes, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e Educação (Paideia), da Unicamp, ressalva que o argumento da realidade na escola deve ser tomado com cautela.

– A cada faixa etária corresponde uma determinada concepção de mundo, uma determinada capacidade de entendimento, e a escola é uma instituição que tem um papel regulador. Ela não pode ser espelho da sociedade, pelo contrário, ela é modelar, deve partir da realidade e ser um exemplo. O papel da escola é chamado deontológico, ou seja: é o “dever-ser”, não uma reprodução moral dos costumes.Nunes não é um proibicionista, contudo. Acha que a escola não deve banir conteúdos e obras, e sim selecioná-las mais adequadamente, e lembra que clássicos da literatura brasileira e estrangeira sempre abordaram temas delicados e polêmicos. Se sexo e violência fossem barrados das bibliotecas escolares, poucos autores se salvariam. Talvez não os melhores.

– João Ubaldo Ribeiro, Dalton Trevisan e o Jorge Amado tratam de temas um tanto árduos, e aí que destaco o papel dos pais no que a criança lê e a figura do professor – afirma Nunes.Algo que passa, na opinião do educador, pela questão do preparo dos professores para apresentar tais obras aos alunos em um contexto educativo e não se restringe aos docentes de sala de aula em alguns dos casos recentes. Apesar de tratar-se de um negócio que movimenta milhões (a título de exemplo, somente para o ano letivo de 2009, o Governo Federal gastou R$ 70 milhões na compra de 10.389.487 livros, segundo o MEC) não há consenso entre os educadores sobre o que, dentre as obras contemporâneas, deve ser indicado para leitura. O que foi avaliado positivamente por técnicos da Secretaria de Educação de São Paulo mais tarde foi contestado pelo próprio secretário.

E no Rio Grande do Sul o que passou pelo crivo de especialistas do MEC não agradou à secretária estadual de Educação, Mariza Abreu.A questão não exclui um viés econômico (o Governo é o maior comprador de livros do mercado nacional) nem político – conforme apontado por Jorge Furtado em seu artigo de 22 de junho em ZH e corroborado por especialistas ouvidos por Zero Hora. Na maioria dos episódios, as autoridades educacionais responsáveis foram alvo de cobranças por parte da oposição, independentemente de partido. O PT que acusou o governo de Serra está no Governo Federal que compra os livros do MEC.

– Não é uma discussão neutra, há um caráter político. O que vem de um partido é criticado por outro – diz Raimundo Helvécio Aguiar, doutor em Educação pela Universidade de Campinas e professor da Faculdade de Educação da UFRGS.A despeito do caráter político ou econômico e do dissenso sobre que temas devem ser abordados nas escolas, essa polêmica converge para uma discussão acerca do valor estético e literário de determinadas obras para leitores em formação. Alguns temas exigem uma abordagem diferenciada? Há limite ou formas adequadas para ensinar o aluno a perceber a diferença entre o chulo a serviço da estética e o simplesmente vulgar?

O livro em quadrinhos Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol foi recolhido das escolas em São Paulo porque, indicado para alunos do Ensino Fundamental, trazia em uma de suas histórias a expressão “chupa minha rola” – a própria editora e alguns autores reforçaram que o álbum foi concebido como publicação para adultos, e que não se esperava que fosse indicado para crianças.– Na literatura você encontra palavrões, mas se há uma coisa que choca apenas pelo lugar-comum, sem nenhuma beleza, daí não é questão de censura, mas de ensinar a apreciar o que é bem escrito – ressalva Beth Serra.

– Essa linguagem existe, o que não significa que se possa falar assim em qualquer momento e lugar. É uma boa oportunidade de se dizer que o livro é um objeto de arte, não uma linguagem oral. E acho que podemos mostrar essa diferença para a criança. É um trabalho difícil, mas vamos lá. Não é censurando e ocultando que vamos chegar a um lugar melhor – rebate Celso Gutfreind, que ainda destaca a importância dos pais também como mediadores.

– O problema para a criança e o adolescente não se resume ao acesso a determinados assuntos, mas a não ter com quem compartilhar o seu espanto, com quem conversar.Autor das fotos publicadas na capa e na central do Cultura, o carioca Alécio de Andrade (1938 – 2003) fez carreira na França. Parte da sua obra, toda em preto-e-branco, está em exposição na Galeria do Instituto Moreira Salles, no Shopping Bourbon Country (Avenida Túlio de Rose, 100), na Capital.

Fonte: Zero Hora

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