domingo, 7 de junho de 2009

Sobre crianças e bichos

Li a matéria e achei muito interessante. Não trata diretamente de quadrinhos, mas fala de imaginação e de crianças, então tem tudo a ver com o público que geralmente acessa oo blog.

O imaginário popular é alimentado por Edgar Rice Burroughs e seu personagem Lord Greystok que, perdido na floresta africana, foi criado por bando de macacos e virou Tarzan dos livros, histórias em quadrinhos e filmes de sucesso

Como você reagiria se, ao chegar à sua casa, a filha de cinco anos o recebesse arranhando a porta e grunhindo miados e latidos? Aberta a porta, ficasse dando pulinhos para festejar sua chegada e pedir seu colo? Levaria um baita susto, não é?

Foi o que aconteceu com as assistentes sociais da cidade de Chita (Sibéria) quando, ao atender denúncia recebida, foram visitar o apartamento onde vivia Natasha. À porta da malcheirosa habitação, sem luz, água ou calefação, um cartaz alertava “Cuidado, ela morde!”. Encontraram menina de 5 anos, suja, confinada a um quarto na companhia de cães e gatos. Embora ali também vivessem o pai e os avós paternos, ninguém cuidava nem com ela falava. Terceirizaram aos animais a instrução e educação da garotinha.

A siberiana não é caso único de “feral child” (criança criada por animais). Na história do Homo sapiens há muitos exemplos de gente criada entre bichos. São exceções biológicas; mostram a capacidade de adaptação do bicho-homem para sobreviver entre espécies completamente diversas da sua.

A referência mais antiga - verdade histórica e mitologia se entrecruzam - talvez seja a de Rômulo e Remo, fundadores de Roma (753 a.C.). Filhos do deus Marte e da vestal Reia Silvia, os gêmeos foram colocados num cesto e lançados no Rio Tibre. O pastor Faustolo os encontrou numa gruta, amamentados e cuidados por uma loba. A nutriz cuidadora dos gêmeos, na versão histórica, deve ter sido Aca Larência, mulher do pastor, apelidada Loba pelo furor lupino de seu apetite sexual. Para essa teoria colaboram o fato dos bordéis romanos serem chamados “lupanaria” e as prostitutas “lupas” (lobas). Em 2005, arqueólogos afirmam haver localizado a Gruta Lupercal sob o Palácio de Augusto, o que daria credibilidade à lenda.

Crianças perdidas durante conflagrações, acidentes ou abandonadas por serem portadoras de deficiência física ou mental foram adotadas por caprinos, ovinos, canídeos, primatas e até ursídeos.

Relato muito conhecido se encontra no Livro do Jângal de Rudyiard Kipling. Mowgli - inventado por Kipling, a partir de histórias sobre crianças extraviadas na Índia - perdeu-se no jângal e foi adotado por alcatéia de lobos. Inspirou filmes e desenhos animados de grande sucesso. Também serviu de inspiração ao nobre movimento dos lobinhos. Em 1916, a pedido de crianças menores que queriam fazer parte do Movimento Escoteiro, Baden-Powell criou o Ramo Lobinho, baseado na história de Mowgli. No grupo escoteiro, a seção que reúne as crianças que tem entre 7 e 10 anos recebe o nome de Alcatéia. Essas crianças tornam-se amigas, aprendem a viver em grupo, a serem responsáveis pelas suas próprias coisas.

Escotismo, fundado em 1907 por Lorde Robert S. S. Baden-Powell, é um movimento mundial, educacional, apartidário, sem fins lucrativos. A sua proposta é o desenvolvimento do jovem, por meio de um sistema de valores que prioriza a honra, o trabalho em equipe e a vida ao ar livre; procura fazer com que o jovem assuma seu próprio crescimento e se torne exemplo de fraternidade, lealdade, altruísmo, responsabilidade, respeito e disciplina.

Pouca gente ouviu falar de seres humanos adotados por macacos. Quatro casos foram registrados. O imaginário popular é alimentado por Edgar Rice Burroughs e seu personagem Lord Greystok que, perdido na floresta africana, foi criado por bando de macacos e virou Tarzan dos livros, histórias em quadrinhos e filmes de sucesso.

Além de Tarzan e Mowgli, o mais conhecido feral child talvez seja Victor de Arveyron (1798 - 1828) encontrado aos 12 anos de idade. A história de Victor inspirou François Truffaut a realizar o belo filme “O menino Selvagem” (1970). Amante declarado da infância, Truffaut encarna o professor Jean Marc Itard, empenhado em defender Victor do tratamento bestial que os acadêmicos da época lhe reservam. Itard ensina o garoto a se comunicar com o mundo e prova aos céticos as reações positivas dessa educação simbólica e sentimental para o desenvolvimento integral do garoto.

Parece que a pequena Natasha vai precisar que algum moderno Itard a ensine a falar e conviver com seus iguais. Talvez até inscrevê-la nos “lobinhos” para aprender as lições de cidadania negadas pelo seu pai e avós.

Edgard Steffen é médico pediatra (edgard.steffen@gmail.com)

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