Muitos de vocês não devem conhecer Fredric Wertham. Mas, se não sabem, deviam saber que por causa de sua cruzada pessoal contra os efeitos perniciosos dos meios de comunicação contra a criança, em especial os quadrinhos, foi criado o código de ética das HQs nos Estados Unidos, uma espécie de censura branca ou autocensura, que teve reflexos diretos no Brasil. Os males feitos pelo seu livro, nunca publicado no Brasil, chamado Sedução do Inocente, foi amenizado apenas nos últimos vinte anos na América do Norte.
O próprio Wertham, no final de sua vida, reconheceu que estava errado quanto às suas afirmações. Em 1974, publicou O Mundo dos Fanzines, livro em que retrata o universo dos fãs e de suas criações baseadas nos quadrinhos e personagens clássicos. Nele, Wertham se retrata quanto ao livro de vinte anos antes. Mas os fãs de quadrinhos foram impiedosos e, até o final de sua vida, nunca mais escreveu sobre o assunto.
É que o estrago estava feito, e não foi pequeno. O Batman, no inconsciente popular, tinha um relacionamento gay com o Robin desde então. Os gibis de horror, terror e crime, que eram grandes sucessos na época, foram condenados ao limbo editorial por décadas. Heróis fantásticos, como o Homem-Borracha de Jack Cole, caíram em descrédito e, como diversos outros, foi infantilizado por muito tempo para sobreviver ao mercado. Os criadores de quadrinhos de heróis e aventura que, à época do lançamento do livro de Wertham, em 1954, eram apenas crianças, foram os primeiros a batalhar, dentro das editoras, mudanças que começaram a surgir efetivamente apenas nos anos 1970. Também pode se atribuir a Wertham e aos desdobramentos das situações provocadas pelo MacArthismo, indiretamente, o surgimento e desenvolvimento dos quadrinhos underground americano, não submetidos a códigos de ética de qualquer espécie.
Mas qual o preço disso? Um atraso de vinte ou trinta anos no desenvolvimento geral dos quadrinhos, à época tidos apenas como entretenimento infantil por muitos pais e educadores equivocados. Numa época em que os quadrinhos estavam claramente em alta. Assim como a televisão. Mas os interesses no novo meio de massa queridinho da América, que transmitia sons e imagens a todo um continente, impediram que seu livro A Guerra às Crianças, sobre os malefícios da tevê aos infantes, sequer achasse uma editora. Como se percebe, haviam interesses comerciais nessa história. Muitos dizem que as grandes editoras queriam apenas destruir o crescente império de William Gaines, da Entertaining Comics (EC), publicadora da maioria das revistas afetadas pela investida do congresso americano contra os quadrinhos.
Acusar os quadrinhos de degeneração familiar, de inculcar na mente das crianças ideias nocivas, não é nada novo. No Brasil, o preconceito aos quadrinhos fez com que toda uma indústria, por décadas, só obtivesse êxito com os quadrinhos infantis. E elevasse o nome de Mauricio de Sousa à condição de maior mestre brasileiro desse gênero, sendo saudado por seus pares internacionais, como Mort Walker (Recruta Zero), Osamu Tezuka (Astroboy), Morris (Lucky Luke) e muitos outros.
Há dez anos, os quadrinhos no Brasil começaram a ressurgir com força total. Cada vez mais editoras publicam quadrinhos, inclusive casas publicadoras voltadas prioritariamente para a chamada alta literatura. Começaram a ser tratados a sério, como sempre deveria ter sido. E isso, claro, deve descontentar alguns setores da sociedade que continuam reverberando as antigas e ultrapassadas ideias de Wertham, que foram concebidas, aliás, observando-se um mundo que acabara de sair de duas guerras mundiais e entrava silenciosamente na Guerra Fria — talvez a pior de todas para a intelectualidade e sua liberdade.
Nesse contexto, foi publicado há alguns dias o artigo de Dioclécio Luz sobre a violência na Turma da Mônica (Veja nos links relacionados). Ele acusa de cara a crítica e a imprensa de ser condescendente com a Turma da Mônica, por motivos, segundo ele, nacionalistas. Segue elencando os personagens da turma, começando com a própria Mônica, em papéis distorcidos. Incute aspectos como bullying, violência e a atitude de espelho de filhos em relação a pais no quesito de vencer a qualquer custo em um personagem com viés claramente infantil, que apenas reflete aspectos da criança — e não o contrário. Dioclécio diz que as crianças tomam a Mônica como espelho para a prática de bullying, violência e da supremacia da força sobre a inteligência. Chega ao ponto de contrapor Mafalda à Mônica, com clara superioridade para a criação do argentino Quino. Faz o mesmo com Calvin, de Bill Watterson, nesse caso atenuando a suposta violência que surge em suas páginas.
Dioclécio aponta desvios comportamentais nos personagens da turma, numa clara imposição do politicamente correto a essas criações dos anos 60 e 70. Fala do uso de clichês como se fosse um erro crasso, em detrimento da inteligência do leitor. Aponta problemas de falta de personalidade nos personagens, em detrimento a clássicos em que "não é necessário olhar a imagem para distinguir nos balões se quem fala é Batman ou Robin, Tarzan ou Guran, Flash Gordon, Fantasma" — quando isso mesmo é efeito da utilização muito bem feita de clichês. A leitura, enfim, destila preconceitos e, mais do que tudo, coloca uma visão acadêmica e sociológica onde não há espaço para isso, pois tais personagens não foram criados pensando nesse tipo de viés. Deste modo, Dioclécio Luz consegue a proeza de distorcer as criações de Mauricio de Sousa (cujo nome ele grafa erroneamente por todo o artigo, para desespero dos revisores do Observatório de Imprensa e do baluarte da imprensa nacional, Alberto Dines) a ponto de transformar inocência na sedução da inocência.
Dioclécio defende a imputação de ideologias e psicologia a personagens, em detrimento de personagens claramente feitos para divertir e entreter, como é o caso de Mônica, Cebolinha e companhia. Para Dioclécio Luz, se percebe, a defesa das ideias e a doutrinação de posições é muito mais importante do que fazer crianças sorrirem e se divertirem. Numa visão preconceituosa, inclusive minimiza o morador do interior do Brasil e defende que este seja espelho da visão do campesinato, palavra que já traz em seu contexto de uso histórico uma visão política e ideológica oposta inclusive à vida real, que é a simplicidade do homem do interior do Brasil simbolizada à perfeição pela turma do Chico Bento.
Talvez por não seguirem os preceitos que Dioclécio apregoa como corretos, a Turma da Mônica e os demais personagens de Mauricio sejam suce
sso no Brasil. Por refletirem a infância nacional e serem aceitos dessa forma. Uma infância da qual a turma é apenas espelho, que já era assim antes, que evoluiu com os personagens, muito menos rasos do que Dioclécio poderia supor. A turma não é elitista e deve desagradar a ideólogos de plantão. Por isso mesmo, por defender essa visão distorcida dos fatos, o artigo de Dioclécio Luz não sobrevive a um debate sério. Mas pode atingir outros ideólogos, aqueles que gostam de policiar os pensamentos, de ter o controle sobre a que nossas crianças podem ou não ter acesso. Controlando a infância, Dioclécio deve saber melhor do que ninguém, pode-se controlar em questão de décadas todo um país.
E aí mora o perigo.
Coluna de Delfin
(Delfin é jornalista especializado em quadrinhos, tendo colaborado com as revistas Rolling Stone, Wish, Trip, entre outras. Produz artigos para o principal site sobre quadrinhos em língua portuguesa, o Universo HQ. É escritor, editor, ilustrador, designer gráfico e atualmente dirige um estúdio especializado em produção editorial.)
O próprio Wertham, no final de sua vida, reconheceu que estava errado quanto às suas afirmações. Em 1974, publicou O Mundo dos Fanzines, livro em que retrata o universo dos fãs e de suas criações baseadas nos quadrinhos e personagens clássicos. Nele, Wertham se retrata quanto ao livro de vinte anos antes. Mas os fãs de quadrinhos foram impiedosos e, até o final de sua vida, nunca mais escreveu sobre o assunto.
É que o estrago estava feito, e não foi pequeno. O Batman, no inconsciente popular, tinha um relacionamento gay com o Robin desde então. Os gibis de horror, terror e crime, que eram grandes sucessos na época, foram condenados ao limbo editorial por décadas. Heróis fantásticos, como o Homem-Borracha de Jack Cole, caíram em descrédito e, como diversos outros, foi infantilizado por muito tempo para sobreviver ao mercado. Os criadores de quadrinhos de heróis e aventura que, à época do lançamento do livro de Wertham, em 1954, eram apenas crianças, foram os primeiros a batalhar, dentro das editoras, mudanças que começaram a surgir efetivamente apenas nos anos 1970. Também pode se atribuir a Wertham e aos desdobramentos das situações provocadas pelo MacArthismo, indiretamente, o surgimento e desenvolvimento dos quadrinhos underground americano, não submetidos a códigos de ética de qualquer espécie.
Mas qual o preço disso? Um atraso de vinte ou trinta anos no desenvolvimento geral dos quadrinhos, à época tidos apenas como entretenimento infantil por muitos pais e educadores equivocados. Numa época em que os quadrinhos estavam claramente em alta. Assim como a televisão. Mas os interesses no novo meio de massa queridinho da América, que transmitia sons e imagens a todo um continente, impediram que seu livro A Guerra às Crianças, sobre os malefícios da tevê aos infantes, sequer achasse uma editora. Como se percebe, haviam interesses comerciais nessa história. Muitos dizem que as grandes editoras queriam apenas destruir o crescente império de William Gaines, da Entertaining Comics (EC), publicadora da maioria das revistas afetadas pela investida do congresso americano contra os quadrinhos.
Acusar os quadrinhos de degeneração familiar, de inculcar na mente das crianças ideias nocivas, não é nada novo. No Brasil, o preconceito aos quadrinhos fez com que toda uma indústria, por décadas, só obtivesse êxito com os quadrinhos infantis. E elevasse o nome de Mauricio de Sousa à condição de maior mestre brasileiro desse gênero, sendo saudado por seus pares internacionais, como Mort Walker (Recruta Zero), Osamu Tezuka (Astroboy), Morris (Lucky Luke) e muitos outros.
Há dez anos, os quadrinhos no Brasil começaram a ressurgir com força total. Cada vez mais editoras publicam quadrinhos, inclusive casas publicadoras voltadas prioritariamente para a chamada alta literatura. Começaram a ser tratados a sério, como sempre deveria ter sido. E isso, claro, deve descontentar alguns setores da sociedade que continuam reverberando as antigas e ultrapassadas ideias de Wertham, que foram concebidas, aliás, observando-se um mundo que acabara de sair de duas guerras mundiais e entrava silenciosamente na Guerra Fria — talvez a pior de todas para a intelectualidade e sua liberdade.
Nesse contexto, foi publicado há alguns dias o artigo de Dioclécio Luz sobre a violência na Turma da Mônica (Veja nos links relacionados). Ele acusa de cara a crítica e a imprensa de ser condescendente com a Turma da Mônica, por motivos, segundo ele, nacionalistas. Segue elencando os personagens da turma, começando com a própria Mônica, em papéis distorcidos. Incute aspectos como bullying, violência e a atitude de espelho de filhos em relação a pais no quesito de vencer a qualquer custo em um personagem com viés claramente infantil, que apenas reflete aspectos da criança — e não o contrário. Dioclécio diz que as crianças tomam a Mônica como espelho para a prática de bullying, violência e da supremacia da força sobre a inteligência. Chega ao ponto de contrapor Mafalda à Mônica, com clara superioridade para a criação do argentino Quino. Faz o mesmo com Calvin, de Bill Watterson, nesse caso atenuando a suposta violência que surge em suas páginas.
Dioclécio aponta desvios comportamentais nos personagens da turma, numa clara imposição do politicamente correto a essas criações dos anos 60 e 70. Fala do uso de clichês como se fosse um erro crasso, em detrimento da inteligência do leitor. Aponta problemas de falta de personalidade nos personagens, em detrimento a clássicos em que "não é necessário olhar a imagem para distinguir nos balões se quem fala é Batman ou Robin, Tarzan ou Guran, Flash Gordon, Fantasma" — quando isso mesmo é efeito da utilização muito bem feita de clichês. A leitura, enfim, destila preconceitos e, mais do que tudo, coloca uma visão acadêmica e sociológica onde não há espaço para isso, pois tais personagens não foram criados pensando nesse tipo de viés. Deste modo, Dioclécio Luz consegue a proeza de distorcer as criações de Mauricio de Sousa (cujo nome ele grafa erroneamente por todo o artigo, para desespero dos revisores do Observatório de Imprensa e do baluarte da imprensa nacional, Alberto Dines) a ponto de transformar inocência na sedução da inocência.
Dioclécio defende a imputação de ideologias e psicologia a personagens, em detrimento de personagens claramente feitos para divertir e entreter, como é o caso de Mônica, Cebolinha e companhia. Para Dioclécio Luz, se percebe, a defesa das ideias e a doutrinação de posições é muito mais importante do que fazer crianças sorrirem e se divertirem. Numa visão preconceituosa, inclusive minimiza o morador do interior do Brasil e defende que este seja espelho da visão do campesinato, palavra que já traz em seu contexto de uso histórico uma visão política e ideológica oposta inclusive à vida real, que é a simplicidade do homem do interior do Brasil simbolizada à perfeição pela turma do Chico Bento.
Talvez por não seguirem os preceitos que Dioclécio apregoa como corretos, a Turma da Mônica e os demais personagens de Mauricio sejam suce
sso no Brasil. Por refletirem a infância nacional e serem aceitos dessa forma. Uma infância da qual a turma é apenas espelho, que já era assim antes, que evoluiu com os personagens, muito menos rasos do que Dioclécio poderia supor. A turma não é elitista e deve desagradar a ideólogos de plantão. Por isso mesmo, por defender essa visão distorcida dos fatos, o artigo de Dioclécio Luz não sobrevive a um debate sério. Mas pode atingir outros ideólogos, aqueles que gostam de policiar os pensamentos, de ter o controle sobre a que nossas crianças podem ou não ter acesso. Controlando a infância, Dioclécio deve saber melhor do que ninguém, pode-se controlar em questão de décadas todo um país.
E aí mora o perigo.
Coluna de Delfin
(Delfin é jornalista especializado em quadrinhos, tendo colaborado com as revistas Rolling Stone, Wish, Trip, entre outras. Produz artigos para o principal site sobre quadrinhos em língua portuguesa, o Universo HQ. É escritor, editor, ilustrador, designer gráfico e atualmente dirige um estúdio especializado em produção editorial.)
FONTE: POP NEWS
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