terça-feira, 24 de novembro de 2009

Existe preconceito contra o uso hqs nas escolas?


A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e o Ministério da Educação distribuíram duas HQs consideradas impróprias para escolas públicas, entre elas títulos consagrados como “Um Contrato com Deus”, de Will Eisner. O problema é inadequação à faixa etária ou existe resistência ao uso dos quadrinhos na educação formal de crianças e jovens?

A graphic novel “Um contrato com Deus e outras histórias de Cortiço”, de Will Eisner. O livro foi considerado inadequado pela cena acima e por outra de violência doméstica. Preconceito?

Em maio desse ano, o projeto Ler e Escrever da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo distribuiu 1216 exemplares do livro Dez na área, um na banheira e nenhum no gol para alunos do terceiro ano do ensino fundamental. O livro, feito para o público adulto, reúne 11 histórias em quadrinhos de diversos autores que falam sobre futebol e, como o tema sugere, usam palavrões e uma linguagem que foi considerada por algumas escolas inadequada para crianças. Segundo nota divulgada pela Secretaria, os livros foram recolhidos antes de chegar às mãos dos estudantes.

O caso gerou críticas em relação à escolha da obra para as crianças e à obra em si, avaliada como de “muito mau gosto” pelo governador do Estado, José Serra. Uma parte dos meios de comunicação se valeu de uma rasa apuração para se referir ao livro como uma obra sem qualidades.

O ilustrador Orlando Pedroso, organizador do Dez na Área, em comentário no Blog dos Quadrinhos, do jornalista Paulo Ramos, disse que houve um engano nos critérios de escolha nas compras do governo. “Há um erro grave no governador dizer que a obra é de mau gosto, quando deveria dizer que é inadequada para crianças de nove anos. Isso faz diferença enorme na conceituação da coisa. Uma pena”.

No começo de junho, a graphic novel Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço (2007, editora Devir), de Will Eisner, sofreu uma retaliação parecida. A obra teve exemplares distribuídos pelo PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) para alunos do Ensino Médio, mas, por estar disponível nas bibliotecas para todos os alunos, o livro também foi considerado inadequado por duas cenas: uma de violência doméstica e outra onde uma menina de dez anos (veja imagem acima), na tentativa de roubar dinheiro, oferece mostrar o corpo a um adulto. Essas são duas cenas de contos diferentes desta obra que mostra a vida dos cortiços de Nova York, na década de 1930, onde o autor nasceu e passou a juventude.

Para Rogério de Campos, diretor da Conrad Editora, especializada em quadrinhos, houve realmente um erro no caso do Dez na Área, mas o problema tomou uma dimensão desproporcional. “As forças conservadoras do país, desde gente de esquerda que aproveitou para dizer que o Serra distribuía pornografia na escola, até os comentários do próprio Serra, aproveitaram o fato para fazer terrorismo, atacar a liberdade de expressão e alimentarem a paranóia atual com relação à cultura”, diz.

“A reação foi tão exagerada que causou muito mais males que os que o livro poderia causar em uma biblioteca escolar”, considera.

Por outro lado, Campos acredita que isso só prova a força comunicativa dos quadrinhos. “Não há dúvida que essa corja obscurantista encontraria coisas muito piores em Jorge Amado ou até em Machado de Assis, mas para isso teriam que ler os livros. Quadrinhos são bem mais fáceis de entender”, disse.

Orientação para diferentes faixas etárias

Os dois casos têm pontos diferentes. A indicação do Dez na área para crianças, segundo Waldomiro Vergueiro, um dos organizadores do livro Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula, foi um erro, o que não desmerece a obra em si. Já os livros de Eisner, sofreram críticas por estarem em um local onde as crianças e não só os adolescentes teriam acesso. Ele acredita que isso é o ressurgimento de um velho preconceito contra o gênero.

“No caso do Dez na Área, alguém pisou na bola. O livro foi pra ensino fundamental e realmente não era indicado para aquele público. Mas, o livro do Will Eisner foi selecionado para ensino médio, ou seja, alunos com 14, 15 anos ou mais, que têm que ter acesso a esse tipo de informação. A função de direcionar o material é da escola, que deve fazer isso da forma que considerar adequada. Os alunos não podem pagar por um problema administrativo da escola.”, disse Waldomiro.

Segundo carta publicada no Blog dos Quadrinhos para explicar a importância da obra de Eisner e dos quadrinhos na educação, “a escola tem a função de levar o mundo ao estudante por meio de leituras e de práticas de letramento, inclusive visual”. O texto ainda defende a permanência da obra em questão nas bibliotecas escolares: “o simples controle de empréstimo das obras resolve as questões de acesso a alunos das séries iniciais”.

A carta foi assinada por cinco especialistas, entre eles Paulo Ramos e Waldomiro Vergueiro, mas outras 275 pessoas já haviam assinado até a publicação desta matéria.

Censura Ingênua e generalizada

O problema com livros distribuídos pelo governo não para nos quadrinhos. Os livros Aventuras Provisórias (Record), de Cristovão Tezza, Memórias Inventadas (Planeta), de Manoel Barros, e o poema Manual de Auto-Ajuda para Supervilões, de Joca Rainers Terron, integrante do livro Poesia do Dia – Poetas de hoje para leitores de Agora (Ática), também foram criticados pelo conteúdo.

O romance de Tezza havia sido indicado como leitura obrigatória para vestibular, mas foi recolhido por uma passagem que descreve relações sexuais. O poema irônico de Terron sofreu críticas por frases como “Nunca ame ninguém. Estupre” e “Tome drogas, pois é sempre aconselhável ver o panorama do alto”, que foram consideradas inadequadas, pois as crianças não entenderiam a ironia.

Já o poema de Manoel de Barros, entregue aos alunos da 6ª série, foi recolhido por conter textos eróticos.

Apesar de as críticas aos conteúdos perpassarem todos os gêneros, a repercussão sobre as HQs foi mais duradoura, o que pode ser indício de preconceito. A escritora Regina Zilberman, especialista em literatura infantil, acredita que se o cartoon ou o quadrinho que tem qualidade de gráfica, além do conteúdo, pode circular onde quer que seja sem ter efeito negativo nenhum.

“Não é um livro ou uma história em quadrinhos que vai transformar uma mocinha pura numa pessoa perversa, de mau caráter”, lembra. “O máximo que pode acontecer é ela se tornar mais lúcida e consciente do mundo. É ilusório e até puritano achar que um livro vai estragar a vida da pessoa. A censura pela pornografia ou por apresentar situações que a criança não entenderia é completamente ingênua”, disse.

Histórias em Quadrinhos também educativas

De acordo com a escritora, a HQ não pode ser rejeitada sob o argumento de que não é educativa. “Isso é preconceito, uma censura muito negativa. O material deve ser disponibilizado e, se o adolescente não gostar, ele mesmo vai rejeitar”, completa. O que vale também para os clássicos. “Um jovem poderia rejeitar Os Lusíadas, mas isso não desmerece a obra. De qualquer forma, tem que estar à disposição dos leitores”, argumenta.

Desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996, existe uma indicação formal para a utilização de quadrinhos, com menções específicas para a inclusão das HQs. A partir de 2006, os quadrinhos foram incluídos na lista do PNBE, que compra obras de diferentes editoras e as distribui a escolas de Ensino Fundamental e Médio.

De acordo com Regina Zilberman, nossa relação com o mundo passa pela imagem e a leitura de uma história em quadrinhos pode tornar a aula agradável e divertida, onde a criança ou o adolescente aprende e curte.

“Fora da escola, os jovens têm contato com o material e, incorporando-o, não se desconsidera ou marginaliza uma prática que a criança já tem. Lidar com esse tipo de material reforça a atividade docente e pode resultar em uma parceria entre professor e aluno, onde todos aprendem juntos”, explica.

Para Waldomiro, o limite está só na criatividade do professor. “É possível ensinar tudo com quadrinhos. As figuras permitem os alunos dominem o código visual, algo ainda pouco trabalhado na escola. Os quadrinhos devem ser entendidos também como forma de leitura, assim como o são a literatura, os textos jornalísticos e tantos outros gêneros que existem na sociedade”, disse.

Com a diferença de que, na maior parte dos casos, quanto mais proibido um gênero é, maior é a curiosidade de procurá-lo. Fora da escola.

Visto na Revista Bravo – por Gabriela Rassy

Fonte: Impulso HQ

2 comentários:

Roseli disse...

Isso tudo me dá uma sensação de déjá vu...Censura vai...censura vem...Absurdo!
Natty fazia um tempão que não passava por aqui. Pura falta de tempo mesmo. Parabéns pois esse blog está bombando cada vez mais.
Bjs

Natania A S Nogueira disse...

Pois é, tanta coisa que realmente precisa de atenção e muitas pessoas parecem querer não ver. Zelo moral demais em alguns casos, e de menos em outros.